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domingo, 26 de maio de 2013

rasguei


Rasguei tudo o que de ti veio,
os livros, os jornais, os emails, os uis e os ais.
Queimei tudo, em lume brando,
e fiquei ali,
de olhos secos e especados e lábios cerrados
a ver as cinzas subir;
e fiquei ali,
a sentir o negrume a entrar,
a vida que não me quis a ir.
Rasguei e queimei tudo o que de ti veio,
senti o teu coração a estilhaçar-se
e o fogo no teu olhar a consumir-me.
Rasguei-me e queimei-me no mundo
só para que sentisses
a tua mão no crepúsculo do meu cabelo rubro a esvair-se.
Uma fagulha de fricção leve,
dois incêndios em leitos de torrentes imparáveis,
margens apostas nas vidraças boreais:
o arco-íris só para os demais.
Falto eu
para que nada de ti sobre.
Falto eu, rasgo e labareda,
o beco sem saída da pobre.

 (Conceição Sousa)
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30* cuidar


Ela queria apenas uma pessoa que a quisesse e soubesse cuidar,
assim como ela quis e soube cuidar de centenas delas em toda a sua vida -
que ainda não era assim tão longa quanto isso.
Ela queria apenas sentir, nem que fosse uma única vez, o outro lado,
o lado de quem é querido e cuidado
por alguém que simplesmente está atento e quer querer e cuidar,
e sabe querer e cuidar.
É triste alguém que dá tanto não saber receber.
Pedir? Sim, até esse ponto ela sabe ir: pedir.
A parte do receber é que é mais estranha.
Há algo nela que tem impedido o que vem de fora de entrar.
E sofre, e chora, e dói - e já nem sofre, nem chora, nem dói.
Adaptou-se e aceitou.
É assim, ninguém com ninguém dentro.
Mas um dia sonhou que seria alguém.
E foi.
Durante muito tempo foi alguém desesperadamente só.

(Conceição Sousa)
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mulher madura


Sabia que não haveria momento igual aquele,
o instante em que uma mulher madura percebe
que um amor limpo - de sua exclusiva escolha,
sem laços de sangue, nem de vínculos,
nem de experiência de horas somadas,
ou de locais partilhados -,
um amor embaraçado,
acena o adeus no sorriso cerrado.
Sabia que, dali em diante, de cada vez que o visse,
de cada vez que o lembrasse,
a lágrima funda da cumplicidade não se esconderia perante aquele rosto,
e a mágoa na voz do silêncio amordaçado no nó do tempo embaciaria
ainda mais a menina agigantada por detrás dos olhos.
Sabia que aquela pessoa era a única no vácuo da existência
a compreender quem ela era -
e a forma como se despiam, em frente um ao outro,
até de pele,
mesmo com todos os agasalhos de inverno ainda no corpo,
de cada vez que se olhavam,
não permitia outra palavra senão o gemido húmido e salgado do tempo:
sempre a lágrima.

(Conceição Sousa)
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é estranho

Quando escrevo,
não há quem me consiga manter no chão,
simplesmente porque não há "quem".
Por muito que me esforce
e treine o meu raciocínio ao dizer
" da próxima vez que começares a escrever,
vais forçar o pensamento a não desviar-se da tua rota factual,
da tua realidade,
e vais tocá-la, de vez em quando, enquanto escreves",
até à data, não recordo um único segundo em que,
depois de iniciado o processo de escrita,
a gravidade da vida me prendesse à mesma.
Entro numa espécie de amnésia transitória,
só me lembro de ter pegado na caneta e de a ter pousado.
Durante o acto, a anterior e a posterior
àquela tinta que escorre da caneta evaporam-se.
Depois do acto, uns dias mais tarde, quando vou reler, pergunto-me
" Mas fui mesmo eu quem escreveu isto?" - é estranho.

(Conceição Sousa)
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Lembra-te de como era

Lembra-te, lembra-te de como era no início...
lembra-te de como era quando não éramos vício,
lembra-te de como era quando nos entregávamos às palavras directas,
quando nos digladiávamos na berma do precipício,
quando nem sequer nos sabíamos tão próximos
e confrontávamos as nossas vivências como meros e desprendidos desconhecidos.
Lembra-te de como eram prenhes de estar aqueles diálogos escorridos ...de tons e cores e chama e sabores,
sem saber que o eram.
Lembra-te da ingenuidade com que nos vivíamos,
tão doces instantes de tudo,
a inocência de dois círculos que se tocam no perímetro,
beijam-se no perímetro,
e não se invadem com diâmetros e raios
e outras medições parvas de egos e circunstâncias incomparáveis.
Lembra-te de como te amava e tu a mim...
e eram tantas as palavras.
De repente, aconteceu:
o eixo magnético rodou,
a gravidade despenhou-se sobre nós,
o alerta consciente de que aquilo poderia ser amor...
e deixou de ser inocente, deixou de ser ingénuo,
fugimos, cobardes, de nós, do nosso delicioso instante.
Os círculos recuaram e ficou um imenso vazio, um imenso silêncio, uma imensa dor, um ininterrupto falar que dói, amor.
E é isto que somos: um ininterrupto silêncio que fala e dói, amor.
A melhor parte disto tudo é que ainda somos.
E, sim, não há como negar: é Amor - só porque não é outra coisa qualquer.
( E só porque eu insisto que continue a ser, será.)

(Conceição Sousa)
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acender a chama

Acender a chama é fácil...
o difícil é mantê-la, ali,
labareda mansa,
que alumia e aquece,
sem que nela ardas
nem nela te desfaças, ó cinza dança!,
brasa a carvão,
um lume que quase se apaga
mas, de repente, sorve
todo o oxigénio da tua boca
e te devolve a luz e o calor, ó movediço chão!,
na temperatura agreste do corpo
que sua e geme tudo o que é amor, meu coração.

(Conceição Sousa)
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Sentiria falta, sim

Sentiria falta, sim...
do gole de café que me trazes à cama,
com um beijo doce e um sorriso melancólico,
quase que a perguntar "ainda gostas de mim?"
Sentiria falta, sim...
do telefonema, algures, na rotina das horas,
do "então?que fazes?",
o abraço que não me larga
e o sussurro que em todas as palavras me diz
"quem me dera estar aí..."
Sentiria falta, sim...
do olhar inquiridor, na hora do jantar,
a inevitável questão "gostas?",
o amor que me acoberta do frio,
a paz resiliente que me despe de todos os luares.
Sentiria falta, sim...
de ti.

(Conceição Sousa)
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O segredo


O segredo?
Imaginar que amanhã não acordo - e pensar que talvez não acorde mesmo.
O importante?
Mostrar que te amo.
Porquê?
Porque quando o coração quer deixar de bater não avisa -
e quando bate sem querer,
também não avisa.
De que adianta guardar o segredo?
Não o quero, nem a este amor: é todo teu.
Fica com ele - já que não pode ser meu.
E, amanhã, é certo, não acordo.
Mas sei que amei e fui amada
todos estes dias em que acordei:
beijar-te.

(Conceição Sousa)
 
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Estás aí?


Demasiadas vezes sinto que estou prestes a desistir -

e demasiadas vezes regresso, no dia seguinte, mais forte

do que alguma vez imaginei.

Sempre convencida de que não há lugar

mais impossivelmente só e apagado

do que o meu coração,

sempre desgastado p'ra lá da borracha,

sempre condenado àquele sorriso ébrio,

àquele baixar de pálpebras esquivo,

àquele som do vento nas palavras que é a tua respiração

na palma do que é a minha:

como pode um vazio saber que é visto?

É vital para um vazio saber que existe, não?

Pode um vazio ser inspirado?

Demasiadas vezes sinto que estou prestes a desistir-

e demasiadas vezes a luz do amanhecer apaga a dureza da noite,

essa que a carrega ao colo no caminho da folha amarrotada

e desbotada, mas que sussurra ao meu ouvido:

nunca é a solo. E insiste, décadas: nunca é a solo.

E é essa ainda a esperança: nunca é a solo. Escuto-te.

E quando a folha não quiser ser preenchida?

Como se mede a inconsciência de um vazio?

Estás aí?

(Conceição Sousa)
 
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às vezes


 

Às vezes sentimo-nos sós,
às vezes o cansaço cobre-nos de cobertor,
às vezes quem deveria estar não está,
às vezes o tempo estica,
às vezes o tédio anestesia,
às vezes ouvimos um sussurro,
a cada dia mais próximo do nosso ouvido, e pensamos
" é p'ra mim? estás a dizer-me que sou bonita?",
às vezes sorrimos a quem passou a estar
e não estava,
às vezes choramos porque quem estava
deixou de estar
e o sussurro afinal não era ao nosso ouvido,
às vezes voltamos à apatia,
às vezes dormimos sem saber porquê
e acordamos sem saber ao quê,
às vezes quem tinha ido volta,
às vezes o tempo voa,
às vezes o sussurro sopra numa voz diferente,
às vezes a vida ensina:
o sol nasce e põe-se todos os dias;
a primavera, o verão, o inverno e o outono revezam-se a cada ano;
a chuva molha sempre;
a lágrima sabe o caminho de cor
e o sorriso está lá na meta.
Às vezes, assumimos a vida, tal como ela nos é –
mas, mesmo que não a assumamos, ela é na mesma.

(Conceição Sousa)
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sábado, 25 de maio de 2013

que não era bonita

Dizias-me que não podias me dizer que era bonita porque o era mesmo e que, se mo dissesses, poderia tomar conhecimento disso e ver no olhar dos outros que era isso mesmo que me diziam: és bonita.
Dizias-me que se tomasse conhecimento disso, e do que o olhar dos outros verdadeiramente me dizia, poderia encontrar maior beleza do que a tua num outro olhar que mo estivesse a dizer.
Dizias-me que se me tratasses com carinho, poderia habituar-me a ser tratada com carinho, poderia gostar de ser tratada com carinho e que , se aprendesse a ser tratada com carinho, poderia reconhecer esse gesto nas mãos de outro e trocar o teu carinho pelo carinho de outro.
Dizias-me tudo ao contrário do que me querias dizer só para que eu não descobrisse quem verdadeiramente era e me pudesses perder, monstro.
Mas não precisei que mo dissesses, o tudo que me mentiste. Logo na primeira palavra que omitiste, no primeiro gesto que confundiste, percebi o quanto me enganei. Que nunca serias tu o homem que amei.

(Conceição Sousa)
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interrupção humana

Houve um tempo na minha vida em que o divino travou, dentro de si, a sua interrupção humana de mim e quis mostrar à mulher a origem dos astros. Nunca me ocorreu, alguma vez, sentir um breve interregno de mundo, da parte, da partícula, e efectivamente saber, tocar, o todo, o ciclo. Sei, agora, que a natureza tem as suas formas de comunicar, a nossa natureza, esta que vem da essência de tudo. E, embora, este tudo nos pareça um caos, na verdade há uma ordem: um encaixe tão perfeito que até dói. Não me perguntem qual a razão de o ter sido, porque não saberei responder, mas fui ( não: sou) uma privilegiada. E, agora, sei que não estamos sós - que nunca é a sós. Sinto receio, sim; sinto dor, sim; sinto tudo o que sentia antes. Há, contudo, um pequeno detalhe que faz toda a diferença: de cada vez que me lembro do deslumbramento em que vivi nesse breve tempo, há algo que me dá força e faz sorrir, algo a que posso chamar de fé. Fé: confiar plenamente no Bem, na ausência de aleatório.

(Conceição Sousa)
 
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Fica, neste calor


Faz apenas e só apenas o que te merece o seres.
Diz apenas e só apenas o que te compete ao quereres.
Mostra apenas e só apenas o que te enriquece viveres.
Sê tu próprio, sem de ti nunca te esqueceres.
Não forces o ir quando o que és está no ficares.
Fica, mesmo que todos os outros não o queiram,
mesmo que tudo em redor seja a desfavor,
e degusta o meu amar-te.
Hoje, mais uma vez,
sinto-me acompanhada -
e sorri quando percebi que me estavas a falar.
Fica, neste calor que é o meu amor por ti.

(Conceição Sousa)

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mundano

Quando tudo o que é mundano te abandona,
quando tudo o que é da rotina inventada dos homens e das mulheres te deserta,
quando despertas na grandeza milenar do que tão-somente és,
quando a pele se engelha, a dor se manifesta, a gravidade vence
o tónus de cada movimento teu
e o mundo corre mas tu ficas,
quando a voz do que sempre foi, é e será, te grita
ao fundo da verdade,
aí as tuas lágrimas lembram-se de todos quantos sempre te quiseram bem.
E quem são eles?
Aqueles que por estarem sempre tu nunca viste.
E onde estão?
Ao alcance de uma sorridente e grata memória.
Tão imaturas foram as escolhas que fiz...
Estou pronto, agora, para nascer.

(Conceição Sousa)
 
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o meu tempo

Sei que vivo o meu tempo,
neste tempo,
e o meu tempo ninguém o pode viver por mim.
Sei que o faço explosivo,
ao meu tempo,
na tentação de ocupar tudo
o que, neste tempo que é meu e teu,
me é possível ocupar.
Sei que me torno assédio,
no tempo que me vive,
presença não querida,
no tempo que me morre:
nesta ânsia de te preencher todo,
tempo meu,
sem brechas por onde te escapares
sem mim.
Sei que te não levo comigo,
tempo ido,
e que te respiro plena,
tempo daqui,
e que bruscamente me roubarás de mim,
tempo que não terei.
Sei que sabe sempre a tão pouco
o tudo em que me sou
no tempo em que me tens,
tempo ingrato.
E, às vezes, parece-me tão parva
a existência...

(Conceição Sousa)
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aprendi a conter-me

Aprendi a conter-me.
Em tempos, entreguei o meu amor ao ponto da anestesia,
de me perder de mim,
de me esgotar de corpo,
de me evadir de espírito.
E quase não me regressei.
Aprendi a conter-me.
Na verdade, não aprendi, não.
A escrita é a entrega possível de um humano
(que não passa de um corpo apenas)
a todos quantos necessitem do seu abraço,
mas não deixa de ser uma doação aldrabada -
tudo o que não é de um para um é batota
( e isso dói).
Queria poder fazer mais, ser mais,
entregar o meu amor pessoalmente a ti,
em forma de conforto,
em forno de alento,
em lume brando num olhar atento,
e que tu pudesses escutar: diz,meu amor, estou aqui.
Diz, meu amor, estou aqui...

(Conceição Sousa)
 
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cãibra

era a quente o toque
do rosto com a perna
da coxa com a boca,
era a calor o sopro
do silêncio com a língua
do palato com o fumo,
era a ardência o sal
da lágrima com o músculo
do gemido com o suor,
era a infinito o abraço
do inverno com a pele
da flor com o estio
do ventre ao outono
da primavera ao arrepio.
era a que não se diz a perguntar
e o ausente de corpo a responder.
sim, somos, nós.
a cãibra.

(Conceição Sousa)
 
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- Deixa p'ra lá. Garanto-te que sou imune à ingratidão.
- Deixa p'ra lá nada! Não podes ser assim, mulher. Tudo te dá coice e tu continuas a sorrir? Tu continuas afável e dada? Dada?! Ó meu rico Deus, tu coloca-me juízo nesta mulher!
- Já te disse, deixa p'ra lá. Eu tenho de agir de acordo com o que me faz sentir bem. Não actuo para expectativas. Aprendi a bloqueá-las. Actuo para mim mesma, para o que entendo que pode fazer ( nem que seja por tropeção na minha pessoa) a diferença na minha vida e na dos outros.
- Mas bombardeiam-te com ingratidão, rapariga. E faz-me pena.
- Não. Fica feliz. Fica feliz porque tens uma amiga que consegue, pouco a pouco, realizar todos os seus sonhos e acredita saber saborear a simplicidade da vida. Acredita que sou muito grata à minha vida.

(Conceição Sousa)
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inseguro

- Estás inseguro? Não estejas.
- Não estou inseguro. Conheço bem o meu valor. Estou preocupado. Estar preocupado é diferente de estar inseguro.
- Não estejas preocupado. São meros caminhos. Caminhos tão somente. Caminhos que precisam de ser feitos.
- Sim, sei. Sabes que te amo, certo?
- Houve alturas em que duvidei. Mas, agora, depois de tanto, depois de tudo, ainda me dizes

" Sabes que te amo, certo?" - um olhar interminável, um olhar doce e húmido inacabável.
- Claro que sei que me amas. Nem sempre soube, mas agora sei.
- Às vezes, és má. Às vezes, és muito má.
- Desculpa. Não se trata de ti. Trata-se de mim. Da minha procura quando não me encontro. Desculpa, mas és livre de ir. És livre de ir. Dificilmente alguém aguenta tanta inquietude. Podes ir sossegado. Eu compreendo e fico feliz por ti. Acredita que fico feliz pela tua libertação.
- Não quero ir. Quero ficar. Deixas-me ficar? Já não conheço a vida sem ti. Quero cuidar-te. Quero ser o teu companheiro. Essa inquietude, às vezes, assusta-me. Tenho medo que só a vejas a ela e não a mim. Mas tens voltado sempre. E eu sei esperar.
- Amo-te.
(a lágrima.)

(Conceição Sousa)
 
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conta-gotas

E tu foste, a conta-gotas, embora.
Nem demos fé, mas foste. Foste mesmo.
Sentei-me à mesa, o guardanapo que não pus
disse-me que beijavas um outro, cor de cereja
e - cá entre nós - tão enciumado,
só queríamos senti-lo, ao usado.
A tua voz ao fundo, na companhia do televisor,
doía quando, ao actor, a actriz tudo pedia -
e não é que ele, com o teu desejo nos olhos, a ela concedia?
A cama aberta, as...sim a deixaste, todas as manhãs,
sempre desfeita, sempre vazia, sempre a loção de barbear
que em vez de servir se despedia
e ía em vez de vir, ía... a maldita ía.
À noite, o relógio contava-me, nos números
que se revezavam,
os nossos turnos;
sabia que vivias algures
num colo mais importante,
e que havias de chegar cá, como sempre chegavas,
ao nenhures -
era só o tempo dos lençóis frios
me esquecerem...
e soube que te foste mesmo
quando deitaste
e eles fingiram me adormecer.

(Conceição Sousa)
 
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Amar, amar mesmo

- Amar? Amar de "amar"? Amar mesmo?
- Sim, amar. Amar de amar. Amar, porra!
- Acho que...acho que amar, amar mesmo, amar de "amar, amar", não. Com muita pena minha, não amo ninguém.
- Com muita pena tua?...
- Sim. O mais triste na vida é passar por ela sem amar nem deixar de amar. Sem sentir, percebes?
- Não, não percebo.
- Eu finjo que amo tudo. Eu finjo que amo todos. Eu finjo que morro de amores e por amor. Eu finjo p'ra me poder esquecer de que nada sinto.
- Como?
- É o mais triste. Este vazio... nada sentir, acho eu. Como é não sentir um vazio?
- Tu não estás bem.
- Como é não sentir o vazio? Não odeio nem amo. Não sinto nada.
- Não odeias nem amas? Tu não estás bem.
- Nada. Nada de nada. Mas, pelo que observo, deve ser bem melhor amar. Eu quero amar, babar, como aquele casal, ali, vês? Aquele casal, ali mesmo. Babar...
- Tu não estás bem...Bem, que grande marmelanço ali vai.
- Vai, não vai? Acho eu.

(Conceição Sousa)
 
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nudez

Quando me chamaste,
senti vontade em me despir,
e mostrei-te o que não mostro a ninguém: as minhas fragilidades.
E o teu sorriso diz-me que ama a beleza da minha singular entrega.
E o meu beijo celebra a nudez da tua essência,
a verdade da paixão em nos vivermos
disto que somos em não nos sermos.
Quantas camadas de pele nos faltam ainda cair
para que possamos, enfim, nos abraçar?

( Conceição Sousa)
 
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21

Ainda assim, prefiro o 21.
Se é p'ra morrer número,
que seja um ímpar.
Não me perguntem o porquê,
mas sempre me senti ímpar.
E nem posso dizer, por motivos óbvios,
desde a idade da pedra.
Deixo que sejas o 20?


( Conceição Sousa)
 
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passei por ti

Hoje passei por ti na rua - ou pelo meu desejo de que fosses tu
( acontece-nos demasiadas auroras, sabes? )
Havias de sentir a loucura
neste meu coração
quando a Terra de repente muda de epicentro:
pum-pum-Pum-Pum-pum-pum-Pum-Pum.
As pernas a tremer em réplicas de um amor que, quando o noticio destroçado,
acha-se com direito a resposta:
não, ainda não acabámos, muito pelo contrário.
Quero muito que me comeces.
Eras tu
e eu quis beijar-te.

( Conceição Sousa)
 
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camélias

Olho para as camélias que me trazem pelo colo,
e piso-as no encalço daquelas outras
ancoradas na japoneira...
ainda no percurso,
desisto das que estão lá no alto, belas,
em cores vivas e sorridentes;
ainda no percurso,
olho para o chão – daquele ponto para trás –,
e apanho uma a uma,
em ternos afagos,
todas as que me trouxeram até ali:
abraço-as no meu colo
e levo-as até ao sorriso de ti.


(Conceição Sousa)
 
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rareiam

Tem sido toda a minha vida,
ser sem esperar algo de volta.
E assim continuará.
Simplesmente porque, em raras ocasiões, forcei a expectativa - numas senti retribuição, noutras desilusão - e descobri que com ou sem ela eu o seria.
É o que parte de mim que me define, essa consistência de tranquilidade melancólica.
E a certeza de que o mundo dificilmente me embasbacará.
Quanto mais preencheres o teu tempo na saciedade do curioso, mais rareiam as possibilidades de um encontro.

( Conceição Sousa)
 
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cansada

Estou cansada das palavras, mas não do amor.
Esvaziei de palavras, mas fica o amor.
Talvez me apague, mas ao amor não -
ainda não.
E quando vires o nada
lembra-te que há um beijo à tua espera.

( Conceição Sousa )
 
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tanto amor

Não sei mais o que fazer
com tanto amor…
Transborda em te querer, em te chorar,
em te sorrir e abraçar.
Não sei mais o que fazer
com tanto amor, meu amor.
É lágrima que se não esconde,
é dor que se não morre, é enlevo que se não cai,
é aperto que se não vai.
Não sei mais o que fazer
com tanto amor…
Escorre de fé no outro, ataca a tez da morte,
massacra o fel do tempo, aspira à luz da sorte
e amua a cada passo, foge a cada sopro,
amarga no embaraço,
sorri à voz de um louco: ouço?
Não sei, não sei mesmo,
o que fazer com tanto amor,
meu agridoce desertor.
É uma cruz insuportável de içar –
e quero muito içá-la.
Quando sinto que também te dói,
que também te doo, há o impulso de te não amar.
É assim que te gosto,
sem de verdade te gostar: o nosso estar.
Não sei mais o que fazer
com tanto amor, meu amor.
Não me ensinaste a te perder,
a te não sonhar.
Deixa-me não amar-te.
O que tu não sabes
É que estás com ela
Porque te segredei esses passos,
Ao encontro de mim,
Nas letras onde nos pequei.
Decalcavam as pegadas ocas de nós,
Que te tatuei numa jugular protuberante,
Um cio verde num encosto de amante,
O meu fio de maturidade,
Prenhe de ausência de voz,
No silêncio do caminho dessa felicidade: à nossa.
O que tu não sabes
é que sou o teu mais além,
Nesse dia-a-dia de brincar às casinhas e aos cowboys,
Mendigos de afecto nós dois,
Na anuência do beijo ao alcance,
Na paz do que tens de percorrer –
Aquele depois que nada é sem o antes.
Aquele antes que tudo é para o depois.
E que as roupas que lhe despes
São precisas no ritual
De nos vestires o pleno, animal.
O que tu não sabes
É que te amo, sim.
Ouviste bem? Amo-te, sim.
Mais uma década te aparta deste som: amo-te, sim.
Amo-te no teu tempo mais adiante,
O meu de agora.
Um dia hás-de cá chegar p’ra mo dizer, a mim.
Desde já te agradeço, meu amor,
Pois sei que mo dirás de coração
“amo-te”,
A esta que te ficou tão só e apenas na mão, perdão.

(Conceição Sousa)

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só palavras

Não te vais desfazer porque eu não deixo.
Podes não encontrar carinho em lado nenhum,
amigo: aqui encontras.
Dizes-me : “ - São só palavras.”
Respondo-te: “- Não, não são só palavras.
São as palavras…
as palavras que embalam lábios e
braços para te tocar,
para te acordar no berço do adormecer
e te fazer sonhar.”
Não te vais desfazer, amigo, porque eu não deixo.
Podes não encontrar carinho em lado nenhum:
aqui encontras –
aqui não te sentes desamparado,
nem sequer perdido,
muito menos abandonado.
E deixa que as palavras te enlacem
e te tragam ao colo também para este lado.
Aqui encontras calor, palavras de amor:
regista-as em duplicado.
Caso aqui venhas, e não as encontres
(às mesmas palavras),
saberás onde buscá-las, p’ra te sentires amado.
E sente todas as palavras como o amigo
(que pensas não ter)
que te estende a mão –
e te conduz p’ra bem longe desse mau bocado,
p’ra bem perto do que mereces: estar contigo.


(Conceição Sousa)
 
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luas

Eu queria embalar as tuas luas,
bordá-las num colar ao peito,
para que nunca a sua luz se soltasse
em berlindes por outros universos,
e te abandonasse nas trevas, meu filho,
de um estar vazio de mãe.
Coloco-te este colar, com as minhas próprias mãos,
só visível para nós,
os nossos sonhos, que ainda bordo,
nas letras com que remendo as brechas do teu coração:
amor de mãe, calor de pai, amparo de irmão.
Segura-te, meu filho, à corrente de vida,
o luar da família, a sagrada união.

(Conceição Sousa)
 
+

a minha mulher

Só podes dizer " a minha mulher" quando sentes e sabes que ela preenche todo o teu coração -
e quando lho ofereces, a todo o instante,
num beijo, num afago,
num abraço, numa palavra doce,
num gesto de carinho, num pensamento terno...
quando sempre que a vês há um "amo-te"
que nem sempre consegues dizer.
"És tu, a minha mulher." -
tens de merecer ousar pensá-lo,
e não o digas se a resposta é não.
"Não, nada disto se passa assim."

(Percebes, agora? Atreve-te...)

(Conceição Sousa)

+

 

doce


Esta noite, apetece-me ser doce - doce como o algodão;

macio como deveria ser um qualquer coração, numa qualquer ocasião.

Qual quer?

 Quero aquela - aquela alma em geleia barrada. Quero prová-la.

E àquele corpo cansado - aquele que escorre e escreve mel....

Esta noite, apetece-me ser doce - doce no sabor dorido em que me tens, meu amor;

doce no sussurro de te amar,

e de (suspiro após suspiro, sorriso após sorriso, em
 
todo este ar que me envolve e é meu -

e que ainda respiro) te perguntar se vens...

Doce, meu amor. Doce é o meu, de ti, retiro. Vens?


(de Conceição Sousa )
 
+
 

leito

Por que me deitaste num leito temperado de sal e sono
e deixaste que as águas ocupassem o espaço do teu abraço?
Agora queres fazer amor com um glaciar à deriva, uma raíz decepada
a hibernar no lago dos moribundos.
O clímax do teu desejo fumega
na carcaça inerte da alma desprovida de nome,
a múmia petrificada no escudo do teu cansaço incógnito,
a seiva que transbordou o corpo
e cobriu de toque o vazio do teu beijo doce.
Quem te marcou
esse querer, suor meu?

 Conceição Sousa

20* Deus é uma mulher


Deus existe, sim. E tu tens ciúmes de Deus, porque ele conhece o meu amor e tu não. O que não te disse ainda é que Deus é uma mulher. Eu e o meu entendimento de Deus só podem ter sido gerados pelo que eu conheço, pelo que sou: uma mulher. E essa mulher existe, sim. Essa mulher é linda. Essa mulher é divina sempre que abre os braços p'ra me acolher, para acolher todos quantos conheço e me conhecem. Essa mulher ensina-me, todos os dias, a percorrer mais uma etapa, a respirar mais um amanhecer, a agradecer mais um entardecer. Essa mulher presenteia-me com tudo o que eu quiser, porque se eu quiser sorrir, eu sorrio; se seu preferir chorar, eu choro; se eu quiser voar no sonho de uma criação rara, eu voo, deslumbrada, e nem p'ra baixo olho. Essa mulher dorme no meu sentimento e acorda todos os colibris quando o sinal vermelho me pinta a passadeira, quando aquele som contínuo dispara o negro do abismo. Essa mulher conhece o meu sono e, embora já me tenha acenado algumas vezes o adeus, regressa sempre de lágrimas no colo:
"Deita aqui o teu desespero, é água benta, minha filha. Sente como é fresca e te ressuscita. Vai. Inspira-te e aos teus. Vai. Sente-me, ao teu amor, em ti, o teu Deus. Não queiras prever o amanhã. Tudo o que tens é o instante. Apaga o restante. Abraça-te, sem demora. Estás. És: o Deus que conheces, o que decide o aqui e o agora. Sorri a cada pequeno detalhe, a cada rotina de vento, a cada sabor a momento. E ama-o. Ama-o. Ama-o sem jeito. Ama-o sem a dor. Ama-o, porque é teu. Ele crê em ti, só tens de o agarrar."

(Conceição Sousa)
 
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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Agora?

Agora?
Agora, apenas ocupo aquele recorte de sol que me é destinado, aquele fragmento de vento, aquele cantinho de chuva, aquele piscar de treva, aquela fragrância de mar.
Agora?
Agora, apenas preencho de tinta rubra a ausência da tua voz, esse silêncio tão quente, tão quente...
Agora?
Agora, prendo-me em todos os gestos de início, todas as rotinas das estações, verto-me de tempo, e mais tempo, e mais tempo.
E há quem diga, e eu acredito, que a felicidade é isto mesmo - continuar, apenas continuar, sem saber ao quê, nem porquê, nem para quê -, mas só tomamos conhecimento dela quando deixou de nos ver.

(Conceição Sousa)


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cordão umbilical

O cordão umbilical corta-se, é certo.
Mas há algo mais fundo,
algo não visível,
algo não palpável,
algo não sondável
que desceu à nossa alma,
que passou a ser a nossa alma,
e aumenta a cada dia,
um não retorno.
Desde então, tudo o que um filho sente,
aterra, inevitavelmente, no coração de uma mãe.
E se dói, dói muito.
E se extasia, extasia muito.
E se chora, é uma inundação.
E se sorri, é plenitude, é vida que se cumpre.
E tudo o mais deixa de ser importante
quando se ouve constantemente,
nem que seja num simples olhar,
"quero viver contigo sempre, mãe".

(Conceição Sousa)
 
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intimidade


Quando esbarra no limiar da intimidade cúmplice,
deixa de ser luta
e passa a ser vida.
Na luta, chora-se.
Na vida, contempla-se.
Há um sorriso longo
que começou antes de ti - pergunta à tua mãe.

( Conceição Sousa )
 
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fenda


Se atentares bem, há sempre aquela fenda,
que assumida e escalada te aterrorizará o olhar
à mais ampla das vertigens.
Uma passagem diferente,
que não te permite abdicar da dor e da saudade rosácea do que foste,
mas que te treme no salto inevitável do que queres conhecer em ti.
E até as pedras te embalam nessa primavera que te escorre de berço.
Até o morro se agiganta
para que durmas na tua sombra e descanses o abraço do sol.
Vai,
que o inverno há-de chegar -
quando sentires que está na hora do seu tempo.
Vai,
a função das pedras neste instante
é ajudar-te a florir.
E isso também lhes dói.

( Conceição Sousa)
 
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Respira fundo, respira fundo...
não quero que apagues os teus problemas...respira fundo...
quero, sim, que decidas brindar-te com o facto de ainda estares. A lua, lá no alto, com aquelas sombras.
A lua, de tantos dias, de tantos meses, de tantos anos,
sempre lá, bela, sempre a mesma, aquela serenidade, aquele silêncio.
E o sol, tão quentinho, sempre lá, sempre o mesmo, sempre a querer ofuscar os... teus olhos.
E a brisa...respira fundo...
vês como tens tudo?
não sentes já saudade do que um dia possas deixar de ver, de sentir, lá, no sempre?
Respira fundo
e decide abraçar a vida que ainda te abraça.

(Conceição Sousa)


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sexta-feira, 17 de maio de 2013

ciumento

Sei que chegas a casa
quando as tuas mãos ocupam todo o meu ventre
e o calor do teu peito se alastra nas minhas costas.
É o meu pescoço quem te dá as boas-vindas,
no banho de beijos a que o obrigas;
e o meu ouvido, ciumento, vai buscar a tua língua
que sem palavras lhe sussurra o invasor gemido :
"estava morto por te ter, amor."


(Conceição Sousa)

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domingo, 12 de maio de 2013

auto-flagelar

Compreende isto, 
quando fazes sombra a alguém 
(sim, sei; não o imaginas, 
pois se é o alguém que te sente como sombra...), 
quando te sentem como sombra, 
só o facto de existires já é tido como ameaçador, 
logo posturas e comentários menos correctos 
relativos a projecções de ti acontecerão sempre. 
Compreende isto, 
acontecerão sempre: 
pecarás por ser santa e pecarás por ser diaba. 
Retém mais isto: 
não és tu que tem de se consumir 
com esses exercícios de baixa auto-estima; 
não é teu o problema, 
mas sim de quem passa o seu precioso tempo 
a escolher as pedras para se auto-flagelar.

(Conceição Sousa)

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bater de asas

É um bater de asas esta dor,
uma aragem fresca onde o aprendiz de alma, continuamente,
ascende a um patamar mais lúcido. 
É a coragem de querer evadir-se do habitual,
quando o que sente é escuridão,
sem o abandonar no seu todo,
conhecer o passo no inóspito,
sangrar a novidade do anterior
e pousar, por fim, no mesmo chão -
agora sem qualquer treva nem descolagem de retina.
É um mero bater de asas esta dor.

( Conceição Sousa )


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não linguagem

Há uma não-linguagem, 
um pano de fundo, 
que por estarem sempre é como se nunca estivessem. 
Não precisas de perguntar o que já sabes. 
Mesmo que te diga o oposto 
ou que nada ouças, há a resposta - 
a razão de o sermos.

( Conceição Sousa )

amor ateu

Eu comecei-o; acabei-o.
E tu, que parecias nem sequer o ter notado, ficaste.
E ainda aí estás. Lamento -
sem deixar de to invejar.
Em ti é eterno
o que em mim durou
apenas um instante.
Em ti é saliva
o que por tacto teu terminou.
Em ti vivemos
o nosso amor ateu.

( Conceição Sousa )


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paixão e ternura

Se tiver de escolher entre a paixão e a ternura, fica a saber: ternura. 
A paixão é um engano da vida, 
defesa a uma rotina que se pensa que se não quer, 
fugaz e efémera, 
por - desfeito o engano - percebermos a falência e o nada 
a que todos os picos se dedicam.
A ternura é cálido beijo, 
olhar humilde e lacrimoso, 
ombro forte e braço rijo 
no amparo e na lida em que o afecto se dá e colhe.
A ternura é consistência e simplicidade, 
o trabalhar do dia-a-dia, 
o cansaço no sorriso ameno de uma voz que se silencia, 
mas que diz todas as palavras nos gestos que se não abdicam.
A ternura é suor e sangue, 
é dor contida, 
é conforto de amante: o verdadeiro e único amor.
Quero-te sempre, ternura.

(Conceição Sousa)

direito ao trabalho

A família é o mais importante. 
Esteja junta ou separada, 
seja diminuta ou alargada. 
O laço familiar sustenta o equilíbrio ao indivíduo, 
logo ao social. 
Seja esse laço de sangue ou de coração. 
E a família, verdadeiramente família, 
respeita cada um na sua singularidade. 
Quando não há respeito, não há família. 
Quando um estado rouba a um elemento da família 
o direito ao trabalho, 
está a destruir toda a família, 
está a assassinar-se a si próprio, ao estado. 
Fatalmente, se não há pais, 
não há paz, 
logo não há país.

(Conceição Sousa)
Pudera eu, por um minuto que fosse, entregar-me no teu abraço.

(Conceição Sousa)

ananás

Deitar a cabeça na tua almofada, 
o ombro feliz de uma vida cumprida. 
De uma vida que permanece - 
nas letras abertas do abraço agridoce, 
tecido em aconchego 
no aroma caramelizante de um beijo 
com sabor a ananás. 
E basta isso para que o instante se vista 
da eternidade de um afecto de domingo. 
Basta isso para que te segrede ao ouvido:
- Tenho todo o tempo do mundo para ti, meu querido...
todo o tempo do mundo e do além. 

(Conceição Sousa)

guerreiro milenar

Conheço, 
como a palma das minhas mãos, 
o sorriso onde nos ficaste. 
Sempre que passo por lá, 
encontro-nos. 
Tem cheiro de fim de tarde 
e guarda-o um guerreiro milenar 
com a espada a apontar para o céu.

(Conceição Sousa)

ânimo e dor

Não recordo momento algum da minha vida, 
onde me sentisse tão desnorteada, 
tão perdida, 
tão sem cálculo possível e definível 
sobre o que o próximo minuto me trará, 
sobre o que, de mim, no imediato segundo, resultará. 
Terá o meu espírito partido deste corpo 
sem que eu conta disso desse? 
É que, se foi, levou ânimo e dor junto. 
Não encontro nenhum dos dois. 
E se querem saber 
nem me lembro do instante em que deixei de os procurar - 
só que os deixei.

(Conceição Sousa)

idosos

Há uma constante nos mais idosos. 
São, por norma, calados: ou estão ou obrigam-nos. 
Compreendem toda a sua vida naquele olhar. 
Como que a dizerem 
"Já aí estive. 
Quer fales, quer não fales, 
quer ajas, quer não ajas, 
é aqui que vais chegar: olha-me bem."
Será que, na vida, também a voz se perde 
como que a preparar-se para um novo início, o ciclo?

(Conceição Sousa)

conheço o amor

Conheço o amor. 
Conheço o amor. 
Que mais posso pedir eu da vida? 
E desde que me lembro de mim, 
ser consciente, 
que tenho este olhar. 
Felizes os momentos em que conheço o amor.

( Conceição Sousa )

família

O que mais desejo neste mundo?
Poder usufruir de tempo com a minha família.
A pedra preciosa dos tempos que correm. 
Só acessível a uma selecta elite -
que nem sequer se dá conta que a tem.

( Conceição Sousa )

água e silêncio

Acredito que 
tal como a água sustenta 90% do nosso corpo, 
assim o silêncio transpira 90% da nossa vida. 
E alguma utilidade hão-de ter água e silêncio...

(Conceição Sousa)

florir

Se atentares bem, há sempre aquela fenda,
que assumida e escalada te aterrorizará o olhar
à mais ampla das vertigens.
Uma passagem diferente,
que não te permite abdicar da dor e da saudade rosácea do que foste,
mas que te treme no salto inevitável do que queres conhecer em ti.
E até as pedras te embalam nessa primavera que te escorre de berço.
Até o morro se agiganta
para que durmas na tua sombra e descanses o abraço do sol.
Vai,
que o inverno há-de chegar -
quando sentires que está na hora do seu tempo.
Vai,
a função das pedras neste instante
é ajudar-te a florir.
E isso também lhes dói.

( Conceição Sousa)

felizes

Sei que estamos felizes. 
Sei que estamos bem. 
Mas em certos momentos 
tenho necessidade de imaginar 
se o estivesse contigo e tu comigo.

(Conceição Sousa)

paracetamol

O amor encontras 
quando te dói a cabeça 
e ele vai, tarde da noite, 
em silêncio, e na surdina, 
a qualquer lado, 
conseguir o paracetamol 
que a tua febre pede.

(Conceição Sousa)