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terça-feira, 3 de abril de 2012

Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar.


Maria, de chave cambaleante, abriu a porta. Toda ela tremia perante a ameaça tão próxima e familiar. Uma arma é sempre uma arma, esteja na mão de quem estiver. É a morte a anunciar-se. Desconhecia se, de facto, iria conseguir demover o companheiro de uma vida daquele seu intento, daquela demoníaca hora que se apoderou da sua razão. Não tinha outra opção. Ou tudo ou nada. Entrou, como que anestesiada, numa espécie de constante chegar a lado nenhum, aterrorizada pelo revólver de calças que insistia em vociferar: “ mata-os! ”. O maldito envenenava o dono das calças: “ Como podes andar na rua de cabeça erguida? Como podes enfrentar-te e ao mundo sabendo que te tomaram a mulher? Como podes ousar sequer acordar sabendo-te despojado da tua casa, da vida que tinhas com os teus filhos? Mata-os!”
Francisco apontou novamente a ansiosa bala à cabeça de Maria. Nesse instante, a espiral petrificou-se no búzio, orgulhosamente, exposto no parapeito da lareira, com o letreiro: vende-se a quem, com amor, quiser comprar. A filha de ambos havia caçado este tesouro raríssimo no mar gelado do norte do país: “ Foram os piratas das Caraíbas que o abandonaram aqui, papá!” O cheiro a iodo. O lodo a diluir-se. E a espiral helicoidal no interior do seu sistema auricular sugava o som das vagas do Além, do p’ra lá do horizonte, do p’ra lá da membrana. Ensurdeceu para o mundo.

(Conceição Sousa in "Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar.")

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