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terça-feira, 10 de junho de 2014

15* Um cão, um gato talvez?

15*
Um cão, gato talvez?
Não deveria ter nascido pessoa, deveria ter nascido animal doméstico, um cão, um gato talvez, tenho este ímpeto de acarinhar, de estender a pata para te afagar o rosto, para te sentir bem-vindo, e olho... olho um olhar infinito de ternura, um olhar resiliente, precisado da tua voz, do teu sorriso, da tua incomensurável atenção.
Não deveria ter nascido pessoa, um animal doméstico, sim, um cão, um gato talvez, uma alma, igual a tantas outras, enclausurada num pedaço de carne que queima, um infindável pedido de auxílio, um não pestanejar hirto a abraçar o seu dono, a aguardar ininterruptamente o instante do calor, um cão, um gato talvez, só porque nunca falo, só porque nunca verbalizo, só porque nunca digo com as palavras - p'ra que preciso delas? -, só porque não me querem as pessoas como eu quero que elas me queiram. Sou orelhas pontiagudas e olhar resiliente: observo e aguardo - p'ra que preciso das palavras?
Um cão, um gato talvez, e muda de verbo talvez o mundo me quisesse, ou acabasse comigo de vez.
A crueldade é ser pessoa, quando me sinto alma enclausurada no interior de um animal doméstico, um que fala demais, e que tudo o que deseja é que lhe consintam o instante de um afagar de rosto e de um cafuné.
E porque sou pessoa as pessoas complicam tanto...


Conceição Sousa

Acordo


Acordo sempre bem para o dia. As cores da manhã celebram-me partilha de um ser maior, natureza dentro e em redor, todo não parte. Oro ao âmago de mim, de nós, envolvência do instante puro, só pelo instante infinito: este pincel de aurora, este aroma a chilrear, esta brisa amena e um ímpeto de eriçar. Partilha. E o amor que amo nos olhos que me são calor de ventre, e o amor que amo nos braços dos homens que me protegem de mim, e a família de que não abdico e que me leva ao colo no embalo do que lhes sou. E a fé que me encontrou e me sossega as dores na certeza de que também a morte é partilha: o nascimento de um novo ciclo neste infinito que faz questão de me mostrar :
não há um que na vida ou na passagem a uma outra vida esteja só.
A dor é para que reconheças o amor. Nem uma nem outro se explicam, mas existem, transformam.
Por que não confias no tanto que não vês, em nós?
Amo-nos. Ama-nos.
Há. É. Sente.

domingo, 1 de junho de 2014

13* Adivinha o que me excita?


13* Adivinha o que me excita?

O que me encanta em ti é essa forma tão linda de ser, o sentimento que contamina tudo o que tocas, e até o que não tocas. Não é relevante a direção desse teu sentir, o que me cativa é como sentes quando sentes e sempre que sentes. Vejo que suas essa entrega inabalável; testemunho as rugas que carregas, cada vez mais fundas e agras, sem, no entanto, te queixares de um ínfimo cansaço – e só um cego não vê como te cansas.

Suo contigo, sabes?

Mas não me canso como tu te cansas… É tão cómodo estar deitada nesta cama a carpir a existência, a rebelar-me de ter nascido sem tampouco mover um polegar para garantir-me pessoa, quanto mais  abrir os braços para te abraçar pessoa?

És tão lindo, sabias? Ainda mais quando percebes o meu ócio ( Ó!, Cio!) e vens mesmo levantar os lençóis e meter-te na cama comigo. Não merecia que o fizesses, entendes? Tão desdobrado em acarinhar tudo e todos, em amparar meio mundo, e nunca te esqueces de vir buscar este calor, aqui, nesta cama gelada, sujeito a saíres empedernido e fatigado de sobremaneira. E sais mesmo, de todas as nossas urgentes vezes, empedernido e fatigado. E mais lindo ainda. Um gelo que se liquefaz pele sorvida. Um brilho no sorriso com que te apresentas – e que continua a celebrar o instante em que nos vimos. Não desenlaças esses cálices ao alto e um tilintar que sempre ecoa.

“Danças-me um século, diva?”, perguntas.

“ Danço-te um milénio, e talvez um pouco mais, génio”, respondo.

( Já te disse que sou viciada na tua resiliência? Já te segredei que é isso que me excita? A tua resiliência?)  

O meu ouvido pregado na tua lapela, a tactear nos pés o ritmo de te saber vivo, um coração maroto, esse teu, que me faz pisar-te porque pára por breves segundos e acelera como se quisesse fugir uma eternidade. E eu confesso-te:

 “ Assim não sei dançar, tudo o que faço é tropeçar em ti, traste!”

“ Não faz mal, pisa à vontade, sardinhas – o que carinhosamente me chamas, tenho muitas na cara, e que culpa me assiste? –, o meu queixo agradece essa dentada de coelhinha”, gracejas. A tua arte é gracejar, sabias. E és uma graça, a minha graça.

 “ Sardinhas ou coelhinha, qual preferes? Peixe ou carne?”, provoco, a isca, sei que gostas de um deslize ordinário.

“ Eu quero é comer, tanto me faz, tenho uma fome de ti!”, mordes, o teu segundo de brejeirice, e eu adoro quando és brejeiro. Um gelo que se liquefaz pele sorvida. Um brilho no sorriso com que te apresentas – e que continua a celebrar o instante em que nos vimos. Braços enlaçados e cálices bem lá no alto. Não há nada que quebre um celebrar assim.

“ Danças-me um milénio, então, velhinha?”, fazes beicinho, ai, como me enlouqueces quando fazes beicinho…

“Danço-te o que tu quiseres e aguentares. Mas tens de me levantar bem lá no alto, quero sentir-nos tocar no voo dos pássaros, consegues?”

E tu aceitas o desafio. Mordes o sorriso. E elevas-me só para nós.

Não te contei, mas fiz-me melhor que eu mesma, supra superei-me, só para que pudesses ficar mais um milénio encantado comigo, só p’ra que pudesses continuar a sentir-te seduzido, só p’ra que saibas que não há melhor do que eu. E, quando te sentir fugir de novo, aguarda-me, uma outra te surpreenderá, ainda melhor do que esta, duvidas?

“ Danças-me um milénio, então, velhinha?”, suplicas.

 Que rede é esta que te apanhou e da qual não queres sair? Vais ter mesmo de dançar um milénio e um pouco mais comigo. Essa tua resiliência endoidece-me. E tu vens sempre buscar, aqui, a este ócio debaixo dos lençóis, suado, pisado, tropeçado, morto, vens buscar a tua vida.

E eu dou-ta, meu amor, desde que me leves sempre nesse cálice de celebração, nesse brilho de sorriso campeão  com que te apresentas – e que continua a enlaçar o instante em que nos vimos.

“Danço-te um milénio, e talvez um pouco mais… Não, não leves ainda os teus lábios, preciso de senti-los um pouco mais.”

( Já te disse que sou viciada na tua resiliência? Já te segredei que é isso que me excita? A tua resiliência?)  

 

Conceição Sousa