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terça-feira, 3 de abril de 2012

Conceição Sousa: o romance.



"-Quando lhe tirarem a casa e o carro, a sua família vai desmembrar-se. A sua mulher gorda vai pedir o divórcio, e os seus filhos esquecidos vão desaparecer de vez.
-Maravilha!
-Então? É suposto ser um desgosto…
-Ah!, sim, sim. Um desgosto. Tem de ser mais forte do que isso.
-E vai ser. O seu patrão, quando se aperceber de que lhe estão a descontar parte do salário para pagar dívidas, vai despedi-lo.
-Oh!, isso não!
-Oh!, isso sim. Aí é que está o seu ponto fraco: o seu desgosto. Mas lembre-se de que se tornará forte, pois vai sofrer imenso com a situação. Nessa altura, surge a circunstância oportunista. Sem casa, sem carro, sem mulher, sem filhos, sem emprego, sem amigos, totalmente na miséria e só, nessa altura, o Filipe torna-se esquizofrénico; mas tenha noção de que ainda demora a acontecer.
-Demora?
-Sim. Há pessoas mais resistentes do que outras. Há pessoas que precisam de estar na mó de baixo, no fundo do poço, meses e até anos.
-Anos???
-Quer ser esquizo ou não? Lembre-se que, no momento em que se tornar esquizo, recupera tudo.
-Sim, sim. Há apenas um senão. Os meus amigos não me vão abandonar. Vão querer deitar-me a mão.
-Não esteja tão certo disso. Já vimos esta receita funcionar inúmeras vezes. Garanto-lhe que ninguém irá deitar-lhe a mão. Ninguém deita a mão a um sem-abrigo.
-Sem-abrigo?
-Sim. É nisso que se tornará, entretanto. Irá mesmo ficar convencido de que perdeu tudo em troca de nada. É essa a ideia. Porque enquanto pensar que no fim valerá a pena, a receita não funcionará. Terá de chegar àquele ponto de duvidar de nós, da receita, ao ponto da descrença total, do desespero absoluto. E atenção aos efeitos secundários.
-Efeitos secundários?
-Sim. Haverá momentos em que, como disse, duvidará da receita e quererá recuperar a sua vida e desistir de sofrer o desgosto. Lembre-se: o caminho é em frente. Não pode desistir. A desistência não trará a sua vida de volta: nem casa, nem carro, nem família, nem emprego, nem amigos. A desistência só lhe trará a garantia de que não se transformará num esquizo. O efeito secundário é a morte. Os desistentes perante a perda total suicidam-se."

(in "Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar." de Conceição Sousa )

Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar.


Maria, de chave cambaleante, abriu a porta. Toda ela tremia perante a ameaça tão próxima e familiar. Uma arma é sempre uma arma, esteja na mão de quem estiver. É a morte a anunciar-se. Desconhecia se, de facto, iria conseguir demover o companheiro de uma vida daquele seu intento, daquela demoníaca hora que se apoderou da sua razão. Não tinha outra opção. Ou tudo ou nada. Entrou, como que anestesiada, numa espécie de constante chegar a lado nenhum, aterrorizada pelo revólver de calças que insistia em vociferar: “ mata-os! ”. O maldito envenenava o dono das calças: “ Como podes andar na rua de cabeça erguida? Como podes enfrentar-te e ao mundo sabendo que te tomaram a mulher? Como podes ousar sequer acordar sabendo-te despojado da tua casa, da vida que tinhas com os teus filhos? Mata-os!”
Francisco apontou novamente a ansiosa bala à cabeça de Maria. Nesse instante, a espiral petrificou-se no búzio, orgulhosamente, exposto no parapeito da lareira, com o letreiro: vende-se a quem, com amor, quiser comprar. A filha de ambos havia caçado este tesouro raríssimo no mar gelado do norte do país: “ Foram os piratas das Caraíbas que o abandonaram aqui, papá!” O cheiro a iodo. O lodo a diluir-se. E a espiral helicoidal no interior do seu sistema auricular sugava o som das vagas do Além, do p’ra lá do horizonte, do p’ra lá da membrana. Ensurdeceu para o mundo.

(Conceição Sousa in "Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar.")