É certo que o que sinto, penso e sou me foi servido, em amplas doses, nos tascos e restaurantes mais variados.
É certo que não me lembro de ter escolhido, alguma vez, a ementa, nem sequer recordo se tive direito a entrada, sopa, prato principal, sobremesa ou aperitivos.
É certo que, ao ser servida, algures na memória, retenho fragmentos de ter preferido peixe a carne, ou carne a peixe, rejeitar o pudim e, com olhar de gula, consumir o bolo de bolacha.
É certo que, no dia em que quis fazer uma refeição ao ar livre, me foi pura e simplesmente negado tal pedido.
É certo que não consigo pensar em alternativas que não conheço. Ou porque, deliberadamente, não me foram ensinadas ou porque as desconheço de facto…
É certo que também me ensinaram a passar fome, pois se não há trabalho, não há dinheiro, e se não há dinheiro não há comida. Mais grave do que isso é… haver trabalho e muito, mas passar fome na mesma, por demorar a remuneração, ou, no final, nem sequer existir.
E pergunto-me: "Mas por que raio é que tenho de passar fome se não tenho trabalho, ou se tenho trabalho, mas não mo pagam? Não sou um ser humano, um ser vivo como os outros? Se tenho fome deveria poder comer como os outros que têm fome, e trabalho não remunerado, e trabalho remunerado, e dinheiro sem trabalho?"
É certo que até pode haver trabalho, mas nos restaurantes de luxo e tascos que frequento, dizem-me que aquele trabalho tem de ser pago de três formas: à experiência ou estagiário, sem compensação financeira; em início de carreira (mesmo que o início dure há 20 anos) com remuneração de principiante (salário mínimo ou menos); à pastilha elástica, o financiamento estica ou encolhe conforme o menu pré-confeccionado. E não importa se ajudaste a comprar os ingredientes ou a confeccionar, se aprendeste direitinho a lição, se seguiste as instruções à risca, se deixaste a cozinha a brilhar, não importa o que quer que te tenham dito sobre a possível promoção no caso de teres contribuído para a invenção de um excelente prato. No final, dizem-te que apesar de ter agradado muito aos clientes , e apesar de tu veres a sala repleta, apesar das evidências, para além de não te darem a promoção, cortam-te na remuneração que não auferes, dizem-te que é necessário continuares a contribuir com a tua fome para pagar aos credores dos tascos e restaurantes, e mais: sabem que é a fome dos teus filhos e o trabalho não remunerado dos teus filhos a contribuir também. Já para não falar das outras formas servidas na ementa, que, por vezes, nos são impostas e é de todo impossível recusar. Escravatura moderna.
É certo que quem me serve (e a quem eu sirvo) são outros clientes que, como eu, sentem, pensam e são o que lhes tem sido servido em amplas doses nos tascos e restaurantes mais variados.
É certa a continuidade na romaria de entrada nesses locais, onde ultimamente já nem comemos ou bebemos, ou nos divertimos sequer, apenas lavamos a loiça, esfregamos o chão e limpamos as casas de banho, sempre com muita fome, e apenas porque nos mandam limpar e porque os outros que têm fome também limpam, e porque virtualmente temos um emprego remunerado, e virtualmente podemos alimentar os nossos filhos num futuro próximo que nunca mais chega…
E se eu não quiser mais ser servida ou servir na base do que outros decidiram escrever como ementa?
E se eu não quiser mais frequentar esses espaços de reprodução do interesse alheio?
E se eu não quiser mais optar por estas falsas opções?
E se eu quiser sentir, pensar e ser sem ementas, nem restaurantes, nem tascos?
Lá terei de ser criada ou criar-me de novo algures num espaço inexistente, num tempo intemporal num hiato dimensional.
A questão é...como acontece a criação?
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