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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

1* Hoje é sempre um bom dia p'ra começar


“Hoje é sempre um bom dia p’ra começar”, não sabe exactamente quando foi a primeira vez que lhe ocorreu este pensamento, mas sabe que foi na infância. Anos depois do nascimento, em Julho de 1974, mas ainda assim, na infância.

Lembra-se de sentir medo na cama quando, ainda de madrugada, a mãe batia com a porta para ir dar horas na fábrica. Sabia que, a partir dali, estava sozinha. Bem, sozinha não. Tinha a mana, um ano mais nova, mesmo colada às suas costas, não sabe se com frio se com medo, e o irmão de dois anos no outro quarto. Escusado será dizer que não pregava mais olho; repetia para si mesma, vezes sem conta “hoje é sempre um bom dia p’ra começar, coragem, levanta-te”, as instruções da mãe “ Acorda os teus irmãos, ajuda-os a vestir e dá-lhes o pequeno-almoço  - quase sempre sopas de leite -, leva o menino à ama e a tua irmã pela mão p’ra escola. Não falhes, é o primeiro ano dela, tem de aprender as letras e os números direitinho, e a mãe não pode, tens de ser tu a tomar conta dos manos. Cuidado com a estrada, vai sempre pela beirinha.”

Ela ouvia uns dentes a tiritar, na época achava que era o diabo, por causa das histórias a que sucumbia todas as tardes na casa da avó. Mais tarde descobriu que eram mesmo os dentes da sua irmã, não sabe se com frio se com medo; mais tarde, porque levou muito tempo a ter coragem de olhar para o sítio de onde vinha o som do diabo a tiritar os dentes. Até que uma madrugada, em que a porta bateu, e o frio começou “hoje é sempre um bom dia p’ra começar, coragem”, e ela olhou, e ela riu-se, era a mana de olhos arregalados e dentes a bater, ‘tadinha, abraçou-a o mais que pôde, e não mais, não sabe se o frio se o medo, voltou a ouvir-se dentes a tiritar. Que diabo que quê?

O pai era sempre muito longe, era comboios e armas e fardas e rigor, era sempre muito longe. E o mais perto, durante mais de uma década, era uma vez por mês em meses maus, duas vezes em meses bons, três dias de Queen e Beatles e bifes da vazia do tamanho dos remorsos e passerelle de Excelentes, ai de nós se não os apresentássemos “porque eu e a vossa mãe nunca tivemos a oportunidade que estais a ter, eu com dez já fazia soletas e a vossa mãe com nove limpava as casas das senhoras”. Um dia, já no oitavo ano, um Não Satisfaz a Ciências Físico-Químicas e “Hoje é sempre um bom dia p’ra começar, coragem”, lágrimas nos olhos, não te zangues pai!, e não se zangou “ mas que não torne a acontecer, ir à escola é um privilégio, e os meus filhos hão-de ser todos doutores!”

E os anos foram passando, as articulações dos ombros quebrando com o torcer dos toalhões de banho, dos lençóis, o carregar da mercearia desde a venda da Zefinha do bairro; o estudo para agradar ao pai que queria estar mas não podia; o tomar conta dos irmãos para agradar à mãe que queria estar mas não podia. E os  professores… como gostava de receber o afecto e a aprovação daqueles professores, professores que foram elevando a sua auto-estima, que reforçavam a sua vontade em melhorar, em evoluir, ao compensar o seu mérito com as melhores notas da pauta. “Hoje é sempre um bom dia p’ra começar, quero ser professora”, decidiu, e assim foi.

Sempre tudo certo: ao sacrifício de uma família ( que mudou de cidade), ao empenho de vários professores, ao esforço de uma decisão, ao mérito, ao suor, ao trabalho, a compensação: finalmente, sou professora,  S. Mamede de Infesta, ano de 1996.

Montalegre, Boticas, Vila Verde, Taipas, Urgeses, Revelhe, Fafe, Celorico de Basto, Braga, Guimarães, Felgueiras, em cada lugar, a cada ano “Deixa lá, hoje é sempre um bom dia p’ra começar, coragem”, e novas gentes, novas necessidades, novos laços, tristes  despedidas, sempre lá, sempre cá, sempre lá, sempre cá. 

Ano de 2013, está tudo do avesso, deixaram de valorizar o trabalho, deixaram de valorizar o mérito, é tudo ao acaso, é tudo aleatório, apetece e cortam, cortam a eito, cortam cegamente, cortam vidas sonhadas e conseguidas com tanto mérito, tanto esforço, tanto trabalho, cortam, cortam, cortam, é um crime o que fazem, o mais grave de todos. Deixou de haver um fio condutor, matou-se a confiança. Aquela criança já não tem frio, nem medo, nem esperança. Apenas sabe que tem de continuar a lutar e que “hoje é sempre um bom dia p’ra começar…”

Conceição Sousa

 

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