“Hoje é sempre um bom dia p’ra
começar”, não sabe exactamente quando foi a primeira vez que lhe ocorreu este
pensamento, mas sabe que foi na infância. Anos depois do nascimento, em Julho de
1974, mas ainda assim, na infância.
Lembra-se de
sentir medo na cama quando, ainda de madrugada, a mãe batia com a porta para ir
dar horas na fábrica. Sabia que, a partir dali, estava sozinha. Bem, sozinha
não. Tinha a mana, um ano mais nova, mesmo colada às suas costas, não sabe se
com frio se com medo, e o irmão de dois anos no outro quarto. Escusado será
dizer que não pregava mais olho; repetia para si mesma, vezes sem conta “hoje é
sempre um bom dia p’ra começar, coragem, levanta-te”, as instruções da mãe “
Acorda os teus irmãos, ajuda-os a vestir e dá-lhes o pequeno-almoço - quase sempre sopas de leite -, leva o
menino à ama e a tua irmã pela mão p’ra escola. Não falhes, é o primeiro ano
dela, tem de aprender as letras e os números direitinho, e a mãe não pode, tens
de ser tu a tomar conta dos manos. Cuidado com a estrada, vai sempre pela
beirinha.”
Ela ouvia uns
dentes a tiritar, na época achava que era o diabo, por causa das histórias a
que sucumbia todas as tardes na casa da avó. Mais tarde descobriu que eram
mesmo os dentes da sua irmã, não sabe se com frio se com medo; mais tarde,
porque levou muito tempo a ter coragem de olhar para o sítio de onde vinha o
som do diabo a tiritar os dentes. Até que uma madrugada, em que a porta bateu,
e o frio começou “hoje é sempre um bom dia p’ra começar, coragem”, e ela olhou,
e ela riu-se, era a mana de olhos arregalados e dentes a bater, ‘tadinha,
abraçou-a o mais que pôde, e não mais, não sabe se o frio se o medo, voltou a
ouvir-se dentes a tiritar. Que diabo que quê?
O pai era sempre
muito longe, era comboios e armas e fardas e rigor, era sempre muito longe. E o
mais perto, durante mais de uma década, era uma vez por mês em meses maus, duas
vezes em meses bons, três dias de Queen e Beatles e bifes da vazia do tamanho
dos remorsos e passerelle de Excelentes, ai de nós se não os apresentássemos
“porque eu e a vossa mãe nunca tivemos a oportunidade que estais a ter, eu com
dez já fazia soletas e a vossa mãe com nove limpava as casas das senhoras”. Um
dia, já no oitavo ano, um Não Satisfaz a Ciências Físico-Químicas e “Hoje é
sempre um bom dia p’ra começar, coragem”, lágrimas nos olhos, não te zangues
pai!, e não se zangou “ mas que não torne a acontecer, ir à escola é um
privilégio, e os meus filhos hão-de ser todos doutores!”
E os anos foram
passando, as articulações dos ombros quebrando com o torcer dos toalhões de
banho, dos lençóis, o carregar da mercearia desde a venda da Zefinha do bairro;
o estudo para agradar ao pai que queria estar mas não podia; o tomar conta dos
irmãos para agradar à mãe que queria estar mas não podia. E os professores… como gostava de receber o afecto
e a aprovação daqueles professores, professores que foram elevando a sua
auto-estima, que reforçavam a sua vontade em melhorar, em evoluir, ao compensar
o seu mérito com as melhores notas da pauta. “Hoje é sempre um bom dia p’ra
começar, quero ser professora”, decidiu, e assim foi.
Sempre tudo
certo: ao sacrifício de uma família ( que mudou de cidade), ao empenho de
vários professores, ao esforço de uma decisão, ao mérito, ao suor, ao trabalho,
a compensação: finalmente, sou professora,
S. Mamede de Infesta, ano de 1996.
Montalegre,
Boticas, Vila Verde, Taipas, Urgeses, Revelhe, Fafe, Celorico de Basto, Braga,
Guimarães, Felgueiras, em cada lugar, a cada ano “Deixa lá, hoje é sempre um
bom dia p’ra começar, coragem”, e novas gentes, novas necessidades, novos
laços, tristes despedidas, sempre lá,
sempre cá, sempre lá, sempre cá.
Ano de 2013,
está tudo do avesso, deixaram de valorizar o trabalho, deixaram de valorizar o
mérito, é tudo ao acaso, é tudo aleatório, apetece e cortam, cortam a eito,
cortam cegamente, cortam vidas sonhadas e conseguidas com tanto mérito, tanto
esforço, tanto trabalho, cortam, cortam, cortam, é um crime o que fazem, o mais
grave de todos. Deixou de haver um fio condutor, matou-se a confiança. Aquela
criança já não tem frio, nem medo, nem esperança. Apenas sabe que tem de
continuar a lutar e que “hoje é sempre um bom dia p’ra começar…”
Conceição Sousa
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