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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

3* Quando a paixão se transforma em indiferença


É inevitável. A paixão acaba sempre em indiferença. Uma atrás da outra, e mais uma atrás da outra, e ainda outra atrás da outra. Já lá vão quase quarenta anos e assim é, como assim sempre foi. A grande dúvida persiste: quando será que acaba mesmo? Acabar de acabar –  de fim? Eu explico.

Lá muito atrás era a paixão pelas brincadeiras: correr descalça e levantar o pó do largo, onde todas as crianças da rua brincavam desde o alvorecer até ao crepúsculo; saltar ao elástico, vezes sem conta, numa cadência exacta, cada vez mais alta, cada vez mais longe; na ausência dos pais, fazer da casa o barco do Tom Sawyer e navegar com toda a canalha das redondezas; jogar às escondidas ( 1, 2,3,…), escapulir pela janela, por cima do galinheiro,  fazer “tchiu!” às galinhas e cuspir as penas que teimavam em entrar pela boca, a tentar arrancar um espirro ao compincha do nariz. Lá muito atrás, basicamente, era isto a paixão: correr, saltar, suar, gargalhar, chorar, fugir, esconder, cantar, competir, perder, vencer…

Ali pelos dezassete, a janela já servia para outra coisa, saltar para o galinheiro já era; agora, havia os cachos loiros da Rapunzel, muito atenta à serenata dos jovens que insistiam em dedilhar nas guitarras as “Dunas São Como Divãs” ou “Tu Eras Aquela Que Eu Mais Queria P’ra Me Dar Algum Conforto e Companhia” ou “Não, Não Sou O Único, Não Sou Único a Olhar o Céu”, ai!, ai!... E vinha um sorria, e vinha outro cantava, e vinha outro dava a mão, e vinha outro segredava, e vinha mais um e escrevia poemas lindos e deixava, sem que eu soubesse, em todos os bolsos que conseguia, para que descobrisse mais tarde, ai!, ai!... Nunca era o mesmo e, por muito que tentasse, havia sempre algum detalhe, um mísero pormenor, que causava o desencanto e…já era. Como foi possível ter gostado tanto daquela aberração? Ciclicamente o mesmo desencanto, a mesma frase: Como foi possível ter gostado tanto daquela aberração?

É certo que pressentia o hábito a entranhar-se, o maldito hábito. O homem e a mulher são seres dados ao hábito. É inevitável. Detestam a rotina; detestam o rame-rame de sempre; deixam até de ver, de ouvir, de sentir aquelas pessoas, aqueles lugares, aquelas falas, aqueles comportamentos que são sempre os mesmos (acho que a isso se chama indiferença, não?), mas, na verdade, precisam do que conhecem como do ar para viver. Passava longas temporadas assim, só no conforto, na paz (mais valia chamar-lhe indiferença, porque indiferença e paz são a mesma coisa, e paz e conforto são a mesma coisa, e conforto e indiferença são a mesmíssima coisa). O pior era quando a hora do tédio, porque a seguir a longas temporadas de indiferença (que não é mau, bem vistas as coisas até é bom, é tranquilo, dá para aproveitar as coisas simples da vida – falo da nossa indiferença, do nosso desencanto, face aos outros –, o sol, a chuva, a lua, o vento, o rumorejar da natureza… ), como dizia, a seguir a longas temporadas de indiferença, inevitavelmente, há o tédio. E o tédio é a pior das doenças para a alma. Um entediado é um desapaixonado. Um entediado é um desacreditado. E um desacreditado está, nesse tempo em que nada o arrebata, em que tanto faz, morto.

Nessa hora, urge encontrar a paixão, ou ser encontrado por ela – mas isto é mais raro.

E, se não encontramos a paixão, temos de a fazer: seja o emprego novo, o puzzle que se constrói com o filho, a companhia diária ao ancião da família, o bolo de chocolate para o nosso doente, o Natal à lareira de um Porto, o poema de rajada, o abraço contínuo naquele olhar de infância, o chá que se toma com a amiga, o livro que se devora até de madrugada… Se não encontramos a paixão, temos de a fazer. Se é a paixão que nos encontra, temos de a agarrar. Dizer-lhe, todos os momentos da nossa terminável vida, que nos sentimos afortunados, que a queremos com toda a nossa volição, que não desgrudamos do que pertence ao nosso ânimo, do que nos faz levantar todas as manhãs e desejar que a vida seja interminável, que não tem de estar ali, efectivamente presente, na nossa vida, mas que só de a sabermos nos sentimos o ser mais abençoado à face da terra: só porque fomos encontrados por uma paixão.

Até à data, fiz milhentas paixões, fui encontrada por uma meia-dúzia, entre pessoas e actividades. Mas a grande dúvida persiste: quando será que acaba mesmo? Acabar de acabar de fim?

Enquanto isso: correr, saltar, suar, gargalhar, chorar, fugir, esconder, cantar, competir, perder, vencer…viver.

 

Conceição Sousa in " Hoje é sempre um bom dia p'ra começar"

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