Eu, que li tanto, mas tanto, mas tanto, autores portugueses e estrangeiros. Eu, que os estudei, com tanto vigor, culturas diversas, ancestrais e contemporâneos, de outros mundos e conterrâneos. Eu, que abdiquei da infância, da adolescência, da juventude, bisbilhotei bibliotecas, confrontei-os amiúde, escrevi teses e ensaios, esgotei de tanto amor e até desmaios. Eu, que me rebelei e queimei tudo, confronto-te agora, meu carrasco do tempo, o ditador de circunstância:
- Mas quem tu pensas que és p’ra me condenar à demência?
Se há voz que aprendi a escutar foi a minha em cada lugar, em cada destino de busca, em cada registo de época, em cada alma poeirenta e tísica mas firme, porque de estada definitiva na folha de café esborratada.
- Mas quem tu pensas que és p’ra me condenar à demência?
E se há voz que encontrei em Pessoa, Torga, Espanca, Saramago, Nietzsche, Kafka, Brecht, Schiller, Shakespeare, More, Shelley, Yeats, Poe foi a da verdade que é nossa, do íntimo, ainda que nos cause devassa.
Irrompo, sim, por ti adentro, hipócrita “Scrooge” do tempo. Não. Não me amedrontas com as tuas palavras supérfluas e banais, sem voz de honra nem respeito pela humanidade dos demais. Sou a “Mutter Courage und ihre Kinder” ( mãe coragem e as suas crianças), o “Wilhelm Tell” da maçã certeira, o Frankenstein sem eira nem beira que acredita no criador e na faúlha da vida, a Juliet à espera do Romeo, a Pecadora que se Confessa, o Caos de tantos eus dentro, a placeba Melancólica e dorida de quem escuta a minha voz, o inevitável “Se” que não se quer, a toda a hora e instante, a Utopia tão perto e tão longe, o Relógio que não da torre mas do coração, a Terceira Idade sentida na experiência do chão e o confronto de infância com a Morte: em vida, não: nunca!
Podeis vir, com esses discursos falaciosos, essa arte de bem falantes, esses espíritos injuriosos. A mim não enganais, só a vós, tristes arraiais.
Vivemos um tempo em que as gentes de bem são torturadas na sua existência. Há um grande capital prenhe de ganância e uma democracia no precipício da falência. Há um parlamento podre nas teias com que se cose; corredores de interesses menores e testemunhos abafados num contágio de rabos presos; elites ameaçadas por inteligências informadas, educadas, um 25 de Abril, lá longe, que acena a derrocada.
- Mas quem tu pensas que és p’ra me condenar à demência?
Se alguém esbanjou o que não devia não foi a classe de trabalhadores: foi sim a elite de corruptos condutores. Quereis agora duplicar o vosso crime e condenar o inocente?
Sabei que a literatura não mente: desperta para a vida e não consente.
Estou farta; não baixo os braços. Há, em mim, todos os Gandhis, Mandelas e Martin Luther Kings. Deixai de ser hipócritas e assistir a funerais quando provocais mais moribundos nos demais.
Exijo condutores de genuíno coração, e que todos os outros condenados sejam por crimes contra a humanidade. O parlamento existe para representar o cidadão e não para servir a divindade.
Tira a meia da cabeça, que mais não é do que uma arrogante gravata, e devolve o “Robin Hood” à história, uma bem contada e não alterada para fins de acta.
Devolve a vida ao trabalhador porque sem ele não há capital. Escravos não seremos e combateremos com palavras e actos tudo quanto nos queiram fazer de mal.
- Mas quem tu pensas que és p’ra me condenar à demência?
Mais do que eu não és com certeza, pois se Deus te deu o dom da vida, a mim deu o dom da clareza. Tiremos ambos as vestes e vejamos onde reside a beleza.
Pelo direito à vida e à dignidade.
Com a força e a fé de Deus, havemos de vencer. Ámen.
Porque, acredita, não estamos sós.
Conceição Sousa
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