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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

trapos



Quando era criança, lembro-me bem, não sabia o que era o tempo, mas já sabia o que era o tédio: costurava as próprias bonecas com os trapos que a mamã trazia da fábrica ( e que feliz que eu ficava quando ela, a altas horas da noite, chegava, derreada e carcomida das linhas de montagem, coração pesado, e me oferecia a melhor prenda que tive na vida, as sobras de um amor infinito na minha memória, as sobras de mil cores, padrões e texturas da obra, do tempo com a minha mãe que me foi roubado pela fábrica); enchia os tachos e as panelas miniatura, que a mamã suava nas feiras, com o arroz, a massa e o feijão, e contava, indefinidamente, os grãos de açúcar, até me fartar de contar ( acreditava mesmo que conseguiria chegar ao último grão – ainda hoje acredito…); tricotava o pano para a mesinha de cabeceira, a duas cores ( sempre a duas cores), e arrematava as imperfeições – sempre gostei de observar as minhas imperfeições e de lhes dar um fim , eram minhas ; lia, exaustivamente, as novas enciclopédias do Reader’s Digest que o meu pai tinha por vício encomendar e, assim, enfeitar todos os cantos da casa e da minha alma; devorava os discos de Vinil, promoções associadas às encomendas, o Elvis, os Queen, o melhor dos 60, 70, 80, e anotava, sem descanso, as letras num papel ( passava dias inteiros a decifrar a última palavra, aquela que não conseguia percepcionar para completar a letra da música). Às vezes, inventava. Inventar não é desistir. É só ceder um pouco, fazer uma batota pequenina. Às vezes, é preciso inventar para conseguirmos avançar – de um pulo só, avançar. E os livros e os discos eram o tempo que a segurança nacional roubou o meu pai de mim.
Quando era criança, sei-o bem. Ainda hoje, desconheço o tempo a passar quando faço da minha luta um ataque cerrado ao tédio e um abraço presente a todas as ausências. Ama-se quem nos tem na alma e no espírito, mesmo que o corpo não consiga – ou seja impedido de –
estar. E eu fui muito amada.

(F)

  (Conceição Sousa)



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