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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

pequenas coisas

Pequenas coisas, pequenas coisas que nos tornam os dias especiais.
Os dias - mesmo quando uma avalanche de céu negro teima em nos cobrir toda a pele e todo o interior -, os dias somos nós que os fazemos, somos nós que os teimamos, nós, aos dias, ainda mais, teimosos que somos e temos de ser.
Pequenas coisas: uma caminhada ao alvorecer.
Cais? Levantas-te. E todo dorido, todo surrado, insistes, t...eimas, e continuas, um passo a seguir ao outro.
Pequenas coisas: um abraço naquele amigo.
Não o quer? Sente-se demasiado magoado para o aceitar? Insistes, teimas, e continuas, um aperto atrás do outro, até que toda a mágoa escorra naquele soluço final.
Pequenas coisas: um sorriso àquele desconhecido.
Não sorri de volta. E enche-te de doido no ar intrigado. Insistes, teimas, e continuas, sorriso atrás de sorriso, até que o encolher de ombros desgrace todas as defesas.
Pequenas coisas: um livro no colo num banco de jardim.
Chove? Está frio? Insistes, teimas; se o jardim não serve, há a biblioteca, o café, o shopping; e teimas, página após página, até que o mau humor se infiltre nas ranhuras do papel, o roa todo, mas traga de volta o sol e o calor ao teu estar.
Pequenas coisas: a Grande Paz.

Conceição Sous

dias p'ra tudo

Tenho dias p'ra tudo.
Tenho dias p'ra estar fechada, contida, resguardada,
pegar numa boa leitura e desfiar a vida que me sabe a nada.

Tenho dias p'ra tudo.
Tenho dias p'ra carregar ininterruptamente no interruptor,
calar a boca no trombone
e massacrar os teus ouvidos com a minha dor.

Tenho dias p'ra tudo....
Tenho dias p'ra me esconder,
morrer aos poucos na escrita do desesperançado
e chorar a infinita solidão ao teu lado.

Tenho dias p'ra tudo.
Tenho dias p'ra me soltar,
abraçar os sete ventos e tudo em ti apertar.

Tenho dias p'ra tudo.
Tenho dias sempre meus,
não estorvo quando amuo,
não faleço no que sou eu.
Dou-te a vida que me faz
e o mundo que me tem,
agradeço a tua paz
e só peço ao tempo: vem.

ânimo

Não precisamos de nos tocar.
Só por nos sabermos
Sentimo-nos vida incontida
E fazemos felizes todos
Os que assim se deixam amar.
No nosso sermos...
Há ânimo -
O botão que insufla
De vida verdadeira a vida de um morto nascido de corpo.

Ouviste, e eu estou grata.
Leste, e eu estou grata.
Deixaste que ocupasse o vazar do teu coração,
e transbordaste o meu.
 

nunca peço

Sei que não to vou pedir. Eu nunca peço.
Faço. Faço sempre.
Faço até p'ra lá do limite. Até p'ra lá da exaustão.
E continuo a fazer.
Porque é assim que sou: fazer.
Mas também é assim que sou: não conseguir pedir.
Não sei. A voz não sai. A boca nem sequer entreabre.
A voz nunca sai. A boca nunca se entreabre.
Não sou pedir. Não sou pedir.
Sou fazer ou não fazer....
Não sou pedir.
E o que sou nunca peço.
E se sabes o que sou é porque teclo. Dedos, não boca.
Mãos, não língua. Movimento, não voz.
Eu nunca falo. Nunca falo.
É pela ponta dos dedos o que sabes.
É pela ponta dos dedos o que peço.
Escrevo.

Conceição Sousa

guardo-vos

Meus queridos, nos meus braços cabem todas as dores do mundo. Sufoco, e guardo-vos.
Há um olhar ternurento a alumiar cada luz que se apaga.
Há um paladar doce a cada lágrima amarga.
Meus amores, no meu colo embalam-se todas as desesperanças do mundo.
Sufoco, e guardo-vos.
Há uma mão aberta a procurar a desistência do teu toque.
Há um sorriso franco a estender a humanidade que nos cobre.
Meus divinos, na minha essência desnudam-se todas as hipocrisias do mundo. Não há cadeados. Não há puros nem há condenados.
Há trajectos, há percursos, há caminhos.
Sufoco, e guardo-vos.

Conceição Sousa

enganar

Passo pela vida a enganar a vida,
essa que escolhe p'ra mim o que não me quer.
É aí que eu escolho enganá-la.
Passo a vida a enganar a vida.
E é ao enganá-la,
em vez de matá-la,
que vivo sem quer
e sem o saber
a verdadeira vida.
E é nesse engano que sem querer...
e sem o saber
acabo por ser feliz.
Passo a vida
a distrair-me
da vida.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ora...apetece-me contar uma outra versão da história: a de que tanto os políticos portugueses como os europeus percebem que a guilhotina se aproxima a passo de meteoro - ainda não o consciencializaram, a grosso modo, mas percebem ( veja-se que já nomeiam carrascos...) -, e como há demasiados gatos e gatas com o rabo preso, começam agora a senti-lo entre as pernas. Alguns, afinal, não são gatos, mas sim ratos - veja-se quantos numa semana saltaram borda fora ( há peste, negra, tchiu!) - e batem com as cabeças nas paredes de tão desorientados. Há um odor fétido a urina. Como são gatos pretos, não se augura nada de bom. A história ensina-nos que, mais tarde ou mais cedo, rolam sempre cabeças. E passos dados, em (cada)falso, já eram. Aprendeste? Eu também não.

(F)


 Conceição Sousa in "Folhetim do Português Sem Sopa, Mas Ainda Com Boca"

Não sei explicar...quando escrevo, há uma plenitude inabalável. Quer quebre de tristeza, quer expluda de alegria, quer me acobertes na tua rotina, quer me negues a tua porta... só porque respiro, escrevo e, quando escrevo, há este embriagamento pleno: felicidade. As palavras vão desenhando nos seus contornos o deleite da existência: atentar na realidade, sentir os outros, pensar as coisas, criar laços connosco, contar a nossa história. Dormir do que dói. Expandir o que extasia. Celebrar a vida e tornar essa degustação eterna. Arte: o alimento da alma.

Não partilho e escrevo, não publico e escrevo, ninguém lê e escrevo, ninguém vê e o livro vai se avolumando, os livros vão se mutiplicando; as ilustrações embelezam as destinos, os capítulos encarreiram os desalinhamentos, os temores esvanecem-se e os pontos de luz infiltram-se a cada brecha: Ah, é aí que estás!
A alegria permanece. E é só o que importa na vida: que a alegria permaneça.

Conceição Sousa

domingo, 16 de fevereiro de 2014

as cores

 
se há momento a que não resisto
são as cores do céu,
ai, as cores deste abençoado e chuvoso céu,
que me apanham sempre na derrocada
do que não interessa mesmo nada,
me prendem o rosto entre monções...
e sopram todos os beijos do infinito
na tez do que quer que seja que eu tenha
acreditado ser triste.
e é aí que eu ouço
"triste é não perceberes que estás"
e é aí que as lágrimas queimam,
a língua abraça o sal,
e tudo me sente um gigantesco lampião sorriso
" sim, percebo, estou, meu agasalho lindo!grata por
mais uma vez, mais uma vez a querer e a aprender a amar."

sábado, 15 de fevereiro de 2014

medos

Não podemos viver de medos
quando a vida se estende sob nós
num rubro decorrente de silêncio, de voz
" a estrela és tu e cintilas faúlhas benzidas
no percurso da vez anímica e singular que é a tua!"
Não podemos viver mortificados de medos,
antecipar a ferocidade do fim
em auroras repletas de inícios.
Deixa que o medo te ocupe apenas na hora do medo,
na hora fatídica do grande medo,...
o medo resignado do que se sabe que acabou.
E mantém segura a lembrança do medo que está por vir
para que vivas com coragem e plenitude
a vida que te merece sorrir.
Cintila as tuas faúlhas rubras e benzidas
na estrela que te fizeste de terra,
de gravidade no chão.
Ama e pede perdão,
ama e pede perdão,
ama e estende a mão.

ousara

Ela não ousara intrometer-se no seu caminho porque acreditava que Deus eram os homens e as mulheres que o faziam, Deus era o livre arbítrio de deixar solta a liberdade de escolha - e, quer ele a escolhesse quer não a escolhesse, ela sentir-se-ia gratificada e feliz porque ( eu ia dizer "concedeu-lhe", mas ela não era Deus) não o obstruiu, não o impediu de prosseguir no seu livre arbítrio, manteve-se fiel ao seu âmago: o de acreditar que Deus é uma construção à medida de cada homem e de cada mulher, a construção que se vai erguendo, tomando forma, tijolo após tijolo, e deixando a folga da liberdade de escolha entre si. E ele escolheu deixar uma folga ainda maior. A terra tremeu e Deus caiu. Essa foi a escolha de ambos. Pelo menos, ela sabe disso: e sorriu.

tarefas rotineiras

 
E há aquelas pessoas que ninguém vê, mas que, na verdade, são elas quem segura isto tudo. Sempre com o seu trabalho, sempre com o seu suor, sempre com o seu silêncio, sempre com o que tem de ser feito. Abraçam as tarefas rotineiras com aquela visão maior que só os grandes génios têm. Entendem que antes de qualquer acto de mundo há que preservar tarefas simples, manter ciclos de regressos a certas horas do dia e da noite, conceder vislumbres de lares; há que, subtilmente, disciplinar essências, fazê-las encontrar-se no caos o percurso de grãos a reinícios, ao entranharem os vestígios das estações.
São essas pessoas que nos guardam, vigilantes, com as mãos calejadas e os pés gretados, a pacificação dos nossos espíritos. São elas os verdadeiros deuses, a quem presto as minhas vénias e rogo as minhas orações, porque sei que nunca param, não conseguem, está-lhes no sangue, serão sempre incansáveis pelo bem da humanidade.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

52*


52*

Hoje, na caminhada de sempre pelos lugares de sempre com os pés de sempre e os horizontes de sempre, decidi fechar os olhos. Ouvi
" Bem-vinda! Finalmente, chegaste."
E, de repente, a pele o calor da ventania a escancarar a porta d...a pele. A volta de chave na fechadura, cerrar os olhos, a pele, a porta que sempre ali esteve sem que a visse, abrir os olhos, fechou-se, sumiu-se, cerrar os olhos, nova volta de chave na fechadura, a pele, e o empurrão do vento a lançar-me num salto dentro
" Isso, adiante, é p'ra frente! Vamos juntos, como sempre, eu levo-te."
Abrir os olhos, fechou-se, sumiu-se, não há, cerrar os olhos, mais uma volta de chave, a porta, a pele, o conforto dos teus ombros fortes nas minhas omoplatas, cercas-me as pálpebras com o afago do esvoaçar do meu próprio cabelo, as tuas mãos a conduzir, a cobrir os meus olhos, o teu beijo ao de leve na minha boca (um ligeiro formigueiro em redor dos meus lábios), o teu sopro na minha nuca, e o suspiro sibilante no meu ouvido esquerdo, uivas
"Amo-te. Já me vês, agora?"
Sim.
Abro os olhos, não estás. Fecho os olhos, nunca deixaste de estar. A chave. A porta. A pele.
Aos olhos foi incumbida a tarefa da distração. Ver é outra coisa.

Conceição Sousa

53*

E há aquelas pessoas que ninguém vê, mas que, na verdade, são elas quem segura isto tudo. Sempre com o seu trabalho, sempre com o seu suor, sempre com o seu silêncio, sempre com o que tem de ser feito. Abraçam as tarefas rotineiras com aquela visão maior que só os grandes génios têm. Entendem que antes de qualquer acto de mundo há que preservar tarefas simples, manter ciclos de regressos a certas horas do dia e da noite, conceder vislumbres de lares; há que, subtilmente, disciplinar essências, fazê-las encontrar-se no caos o percurso de grãos a reinícios, ao entranharem os vestígios das estações.
São essas pessoas que nos guardam, vigilantes, com as mãos calejadas e os pés gretados, a pacificação dos nossos espíritos. São elas os verdadeiros deuses, a quem presto as minhas vénias e rogo as minhas orações, porque sei que nunca param, não conseguem, está-lhes no sangue, serão sempre incansáveis pelo bem da humanidade.

Conceição Sousa