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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Em Busca da Flor de Mil Cores 1 - Bugalhudo e Caracolitas no Bocejo do Vulcão ( Novembro, 2013)



"Tentem imaginar o retrato: um grupo de crianças boquiabertas em redor de um objeto, ora agachadas ora levemente reclinadas. Todas em silêncio, a aguardar a novidade da próxima sensação a explorar. Seria um aroma? Seria uma cor? Seria uma melodia? Seria um sabor? Seria um toque? Um toque, pois. Até o toque era algo diferente, meio gelatinoso, meio asqueroso, como se quisesse repelir quem o estava a mexer. E nunca era o mesmo toque. Sempre diferente, de todas as vezes que os dedos o percorriam. Soltava um odor perfumado, muito agradável, um aroma que magnetizava e fazia com que aproximássemos os nossos rostos daquela espécie de trevo de quatro folhas."

(p.58 de " Em Busca da Flor de Mil Cores 1 - Bugalhudo e Caracolitas no Bocejo do Vulcão", 1º livro (de seis) do conto infanto-juvenil de Conceição Sousa.

Em Busca da Flor de Mil Cores 1 - Bugalhudo e Caracolitas no Bocejo do Vulcão ( Novembro, 2013)



Entrada 2: As palavras.

Para que o portal se abra, tens de ouvir a música, ceder ao que ela mostra e dizer as palavras.
E as palavras descobrem-se sempre por acaso.
Segue o rasto do som, do odor, e pensa na rotina.
 
- Só isto? Que música? – reclamou o André.

 - É, assim está difícil. “As palavras certas descobrem-se sempre por acaso…” – refletiu a Juliana.

 - “Segue o rasto do som, do odor, e pensa na rotina.” – murmurou o André, abespinhado.

p. 86 de "Em Busca da Flor de Mil Cores 1 - Bugalhudo e Caracolitas no Bocejo do Vulcão.", 1º livro ( de seis) da obra infanto-juvenil de Conceição Sousa.


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Em Busca da Flor de Mil Cores 1 - Bugalhudo e Caracolitas no Bocejo do Vulcão ( Novembro, 2013)



- Impressionante como o Céu existe mesmo, mano!

- E porque não haveria de existir, Ju?

- Não é isso. Há quem diga que não existe, mas é só olhar de baixo para cima. Olha ele, lá. E, aqui, se apontares, ele aproxima-se, e toca-te mesmo. Ora experimenta. Aponta o dedo para o Céu e fixa aí o olhar. Não tens a sensação de que o estás a tocar? Maravilhoso! É tão quentinho. E é tão simples. É só olhares de baixo para cima.

- Claro! – respondeu o Mago – No vosso mundo poucos o tocam porque têm a mania de olhar de cima para baixo, sempre de cima para baixo. E é tão óbvio. Se insistires em olhar de cima para baixo, a única coisa que vês, que consegues tocar, e que te toca, é o chão. Se tens o Céu por detrás da cabeça, e não a levantas para olhar para lá, como é que queres que o Céu exista?

- Certo, Agosto. – anuiu o rapaz – Quem se acha superior, olha sempre de cima para baixo; quem se sente diminuído, olha sempre de cima para baixo. Há mais de meio mundo que não se lembra, não quer, ou não sabe olhar de baixo para cima. E é tão simples: ser humilde e saber levantar a cabeça. Olha o Céu, lá. Tão lindo! Existe mesmo.

(Conceição Sousa in " Em Busca da Flor de Mil Cores", conto infanto-juvenil)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013


Quando as manhãs abraçam assim
o manjar do tempo,
as noites deitam-se
no ofegar do nosso leito
e a vida sulca todas as margens -
um rio só, imparável bebedouro,...
fontanário de colheitas doces e maduras.


(F)

 


Conceição Sousa


Procuro a leveza das coisas que existem, das pedras;
descanso na constelação exata dos astros;
adormeço na rotina das vagas e das correntes;
e anseio a devolução ao criador deste rio
a que chamam pensamento,
deste oceano que me acorrenta: o sentimento.
Procuro a leveza das coisas que estão, dos penhascos.
E se pensamento não fora nem sentimento houvera
não saberia agora a profundidade da mentira que procuro:
Sei lá eu o que é sentir-me pedra ou ser penhasco?
Quererá a pedra ou o penhasco sentir-se ou saber-se eu?


(F)

Conceição Sousa



morreste-me

Quando me morreste, não soube de imediato o que isso era "me morreres".
No dia seguinte, o amanhecer retornou, como todos os outros amanheceres de todos os outros dias seguintes e dos dias anteriores; a noite caiu, como todas as noites de aí em diante e antes dessa caem; a brisa orvalhou-me a face como já o havia orvalhado antes e com certeza haveria um depois; as folhas restolharam-me os pés descalços como já era hábito no antes e o seria no após; o cheiro a terra arada entranhou-se-me na pele, como acontece sempre que um homem ou uma mulher ou um animal revolvem a terra.
Foi quando afaguei a minha pele surrada que percebi: não mais um olhar teu a cativar o meu silêncio. A memória? Pânico. A memória? Não conseguia isolar no tempo o espaço cativo do teu último olhar. Pânico. As tuas feições? Não as lembrava. Como? Sabia que não mais o teu sorriso, não mais o teu choro, não mais o teu beijo, o teu abraço e nem sequer um vislumbre do que era o teu rosto conseguia. Pânico.
Não é morrerres-me que me dói. É ter percebido que levaste contigo a minha memória. Essa é a dor maior. Não me teres deixado um canto para te lembrar ( uma esquininha que fosse), para que possa continuar a saber o que é amar-te. E até as fotografias me soam estranhas.

Conceição Sousa

 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

trapos



Quando era criança, lembro-me bem, não sabia o que era o tempo, mas já sabia o que era o tédio: costurava as próprias bonecas com os trapos que a mamã trazia da fábrica ( e que feliz que eu ficava quando ela, a altas horas da noite, chegava, derreada e carcomida das linhas de montagem, coração pesado, e me oferecia a melhor prenda que tive na vida, as sobras de um amor infinito na minha memória, as sobras de mil cores, padrões e texturas da obra, do tempo com a minha mãe que me foi roubado pela fábrica); enchia os tachos e as panelas miniatura, que a mamã suava nas feiras, com o arroz, a massa e o feijão, e contava, indefinidamente, os grãos de açúcar, até me fartar de contar ( acreditava mesmo que conseguiria chegar ao último grão – ainda hoje acredito…); tricotava o pano para a mesinha de cabeceira, a duas cores ( sempre a duas cores), e arrematava as imperfeições – sempre gostei de observar as minhas imperfeições e de lhes dar um fim , eram minhas ; lia, exaustivamente, as novas enciclopédias do Reader’s Digest que o meu pai tinha por vício encomendar e, assim, enfeitar todos os cantos da casa e da minha alma; devorava os discos de Vinil, promoções associadas às encomendas, o Elvis, os Queen, o melhor dos 60, 70, 80, e anotava, sem descanso, as letras num papel ( passava dias inteiros a decifrar a última palavra, aquela que não conseguia percepcionar para completar a letra da música). Às vezes, inventava. Inventar não é desistir. É só ceder um pouco, fazer uma batota pequenina. Às vezes, é preciso inventar para conseguirmos avançar – de um pulo só, avançar. E os livros e os discos eram o tempo que a segurança nacional roubou o meu pai de mim.
Quando era criança, sei-o bem. Ainda hoje, desconheço o tempo a passar quando faço da minha luta um ataque cerrado ao tédio e um abraço presente a todas as ausências. Ama-se quem nos tem na alma e no espírito, mesmo que o corpo não consiga – ou seja impedido de –
estar. E eu fui muito amada.

(F)

  (Conceição Sousa)



rupestre

O acaso nunca é fortuito. É
 sempre ao alvorecer.
E é um acaso eu te gostar,
assim, rupestre,
com aroma a casebre
e no aconchego de um café felino
a uivar o saibo
do nosso cerco.

(F)


Conceição Sousa

bicar de rolas

Eles caminhavam, de mão dada;
calavam as fendas daquelas lajes;
entrelaçavam os dedos no voo das rolas
que bicavam,
num vai-e-vem,
as cascatas dos fontanários;
sorriam um ao outro
os seus silêncios,
as suas tagarelices,
as suas teimosias,
as suas anuências,
a sua montra...
retiniam
naquela gota que escorria
a compreensão daquele estar
tão singular,
com corpos de outros,
à distância de duas cidades,
num laço de ombros e vozes.

(F)


Conceição Sousa

alcatrão orvalhado

É quando a intermitência de nós
se espalha no alcatrão orvalhado de lua
que, no vislumbre desta cortina de melancolias cruzadas,
recosto a cabeça -
sem acordar
o sono p'ra lá do vidro baço de desejo,
o aspirar entrecortado pelo vagão da recolha de lixo,
a ode maior que se eleva das horas
em que as ruas descansam dos ponteiros hirtos,
da tinta permanente em que se declaram todas as guerras -
que mais não são do que a prova sufocada de um amor maior.
E o gemido assusta os animais vadios,
esses que passam a sentir-se acompanhados
e se aproximam da insónia das casas -
e elas começam a arder.


(F)


(Conceição Sousa)


sentir-te, ó minha cidade

Sentir-te, ó minha cidade, nos pés descalços
que correm um rio de suor inocente,
monte deslizante em folhas vencidas pelo tempo
e galhos quebrados pelos sonhos íngremes das intermináveis horas.
Sentir-te, ó minha cidade, nos pés fustigados,
encosta de rochas transpiradas pela água da vida
e poços verdoengos onde chapinham girinos à sua sorte
e larvas de homens que desconhecem ainda o seu gigante.
Sentir-te, ó minha cidade, nos pés gretados,
por debaixo dos saltos altos e das lajes da modernidade,
o pó de cada estio ao crepúsculo a ser desenhado na macaca,
a lama de cada monção de censura a ser surrada no tricolé.
Sentir-te, ó minha cidade, nos pés calejados,
a busca das serpentes enroladas nas bermas do carreiro,
o estalar de língua no rubro dos sinos em flor,
as badaladas exatas de cada chegada e partida de estação -
sempre acocorada nos braços estremunhados de uma alva avó.

(F)
 (Conceição Sousa)

remorso

Há que tentar para que o remorso não nos abafe a alma. Pelo menos saberemos que aquele trilho já percorremos e que as vergastadas nas pernas e braços valeram as arrítmias. Debalde deixamos de o temer e de o considerar. Sem fôlego, o olhar sorri à escuridão daquele outro carreiro, mais atrás ou mais adiante - este amanheceu de repente, enterneceu a curiosidade, quebraram-se temor e encanto. Mais um palmo de mundo no mapa da minha busca. A sensação é a mesma de sempre: saciedade e insatisfação: só isto?

(F)


  (Conceição Sousa)

estava destinado

É simples. Estava destinado dares um passeio pela vila, como há anos desde há décadas fazes, tactear as linhas da tua mão. Estava destinado conheceres as mesmas alegrias de sempre, as que se sentam naquela esquina de sempre, e receberes as mesmas tragédias de sempre, as que te fazem tropeçar naquele quelho de sempre. Estava destinado...
É simples. Queres que seja diferente? Hoje, agora, decide. Entra num comboio e ruma até uma praia, uma outra cidade, uma aldeia no interior. Quando lá chegares - e até na viagem -, sorri a quem está, mesmo que não conheças, mete conversa e abraça o mundo. Vais ver que, porque quiseste que tivesse sido diferente, o teu dia resultará mais rico, ao tacteares assim a mão e o espaço do outro.
Boa descoberta!

(F)

(Conceição Sousa)


verdete

Todos caímos - alguns tropeçam, outros são pregados na cruz com rasteiras. Todos caímos - uns aldrabam a queda, camuflam as feridas, e fingem uma erecção permanente; outros sorriem o elevar de rosto - é isso que as quedas fazem, quebram-nos nas pernas mas erguem-nos no olhar ( chamo-lhes despertar, ter um vislumbre de céu); outros choram o que caiu e, enquanto se afundam naquele bolor - verdete de ser que parece não conseguir se libertar do acto de escorregar -, esquecem que já estão no chão, e que se estão na lama mais vale besuntarem-se nela, esfregarem-na na cara de todos, e só aí romperem as lágrimas para que lavem a subida na sujidade impregnada no coração dos hipócritas. Há uma pele luzidia em ti a soerguer-te essa demanda.
E, lembra-te, todos caímos.
 

(F)
 ( Conceição Sousa)

utopia

No reino da utopia, não há posse nos relacionamentos e, de parte a parte, cada qual celebra, no imediato instante, o que o outro lhe entrega e oferece. O contrato é cumprido e saldado ali, sem direito a garantias, juros de mora, ou indemnizações - isso é treta de quem se destina um amanhã que, todos sabemos, pode até nem existir. Uma linguagem futurista que, qualquer mente sensata e sã, recusa no seu idioma. Como pode alguém prever e apropriar-se do nada?

(F)


 (Conceição Sousa)

neblina

Às vezes, sinto, que não me pertenço. Às vezes, uma neblina cobre-me a mente: o olhar dispersa, todo o som ecoa cada vez mais longínquo, e mesmo o tacto se esquece do toque - já nem se lembra. Alguém me mordisca a pele, alguém suga o meu pescoço; o tónus desertou o meu corpo, congeminou com o intumescimento e, numa nómada travessia, encavalitaram-se num espírito que deixou de me habitar. O arrepio partiu no voo de um único, inerme, não cumprido, gemido.
Como chamamos ao tempo inconsciente, ao instante que já não nos traz no ventre?
Será vida parassimpática?


(F)


(Conceição Sousa)

larvas

Se sabes que o teu corpo vai servir para alimentar larvas, mais vale que comeces já e não te incomodes que a tua alma também o sirva. Quem sabe esses outros corpos não carreguem com eles, e com as larvas que os terão por alimento, a doçura que faz falta ao mundo?
 

(F)
  Conceição Sousa

bebedouro


Quando as manhãs abraçam assim
o manjar do tempo,
as noites deitam-se
no ofegar do nosso leito
e a vida sulca todas as margens -
um rio só, imparável bebedouro,
fontanário de colheitas doces e maduras.
(F)

Conceição Sousa

p'ra baixo

Queres pôr-me p'ra baixo,
queres manter-me ali, espezinhada, ó vida!, ó desgraçada!
Esqueces-te...esqueces-te que em ti busco essa imunidade,
esqueces-te...e encontro, ó vida!, ó desvairada!, encontro sempre.
Se bem que me segures nesse patamar dos que se martirizam,
esqueces-te que em ti inspiro, espreguiço-me fundo, e abraço tudo
o que preciso, tudo o que me satisfaz neste mundo: as estações.
Queres pôr-me p'ra baixo, ó desgraçada!,
e não vês que é em ti, ó vida!, na tua existência, que me sinto
a mais amada.
Vem, vem, sacaninha!, dá-me com tudo!
Enquanto me deres, bom ou mau,
já terá valido a pena: ainda abro os olhos, ainda vejo luz e escuridão, ainda estou.
A rir? Claro que sim. Escuro é que não.
(F)
Conceição Sousa