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quarta-feira, 28 de maio de 2014

10* Já não dói



10* Já não dói.

 

                Sei querer – e sei que, quando quero, quero muito. E quem não quer?

                Mas também sei sentir. Faço por isso: por saber sentir. E sei que me dói sem que te doa a ti. E sei que a mágoa é minha – tão só minha. E sei que é tolice exigir a alguém um sentimento que é só meu. Por que haveria esse alguém de sentir o meu sentimento, pensa?

                O desacerto das pessoas é quererem obrigar as outras pessoas a sentir o que tão somente é sentimento delas: unipessoal. É bonito? Parabéns! Usufrui, agarra-te com unhas e dentes a esse sentimento, pois só o que sentes e é teu é válido, genuíno –

mas não o imponhas ao outro,

mesmo que o objecto desse teu olhar tão límpido, tão brilhante, principalmente se o impulso desse teu estado de devaneio feliz.

Não o imponhas.

Ao trespassares o teu horizonte de encanto, invades a neblina de um outro mundo que não o teu, repara: invades,

e observas-te, no lado de lá, deserção de ti mesmo, no lado de cá, fenda irreparável, quebra de identidade, coisa feia e violenta.

E p’ra quê? P’ra que te apedrejem de volta? E com razão. Quem te deu licença de pisar em território ocupado? Ou para que vires o sangue do avesso e ele se verta inexistência condenável?

Há um sentir nublado, p’ra lá do enlevo da montanha, que não o teu. Despede-te. E despe-te da arrogância. Nada te é posse. Muito menos aquilo que ao outro pertence: o seu sentimento.

Sopra-lhe um beijo quando o vires, ao teu arrogar-se; testemunha-lhe o teu sorriso, aquele que ficou lá atrás, junto a uma espada empunhada contra o céu, o vosso troféu, e aguarda um reflexo – luminosidade, talvez…

Às vezes, acontece, um reflexo, um espelho de água, umas nano-vagas que ondulam a brisa do teu leve aceno. Vi-te, tocaste-me, levei-te no meu ombro para sermos felizes. Um segundo em que dois sorrisos se olharam e algo de extraordinário aconteceu: o teu sentimento confessou-se o meu.

Um segundo de invasão basta-me.

Um segundo de invasão de que não tenho remorsos. O que é um segundo de invasão quando comparado com quase um século corpóreo e mais de um milénio de vida? Comungada com milhões de tantas outras vidas; algumas ainda nem sabem que estão para nascer e para morrer. Digo-te já: mais de um milénio e outro tanto. E olha que tenho um dom.

As nuvens trazem cinzas carregadas de rebordos prateados e falam-me, a todo o instante, desses teus milénios. Um bem tão grande às pessoas, à humanidade. As nuvens sabem. Agora, também tu ficaste a saber.

Um anjo com asas de zinco segredou-me o teu caminho e sossegou-me. Pediu-me desculpa, sabes? Disse que não conseguia falar-te e precisou de me atirar nos teus braços para que pudesses tropeçar naquela imagem,

a que só a ti estava destinada.

Diz-me, agora mesmo, que está orgulhoso de ti. Que soubeste receber a ternura dos beijos que sopram os ares da humildade do instante, e que o tempo em ti deixou de contar: só o que tocares será sorriso e destino. Mas isso tu sabes.

Não me tocas. Não serei sorriso. Não serei destino.

Não fiques triste. Sei me alegrar, sem invadir mais do que um segundo.

O anjo com asas de zinco pede-me desculpa, conhece a minha dor. Diz que lhe falaram de mim como mensageira, e que nem foi descuido nem nada, precisamente por anteciparem o meu coração de chumbo. Tinham plena certeza de que o abriria, só mais uma vez, especialmente para ti (está explicada a minha surpresa!); que te deixaria entrar, te comunicaria o calor dos astros, e te expulsaria com eles.

Doeria o retorno ao claustro, avisaram. Não encontraram, contudo, mais ninguém que pudesse tocar-te e sobreviver de novo ao glaciar, com um segundo apenas de invasão.

Perdoei-lhes, sabes. A todos eles, os que congeminaram. A ti não há o que perdoar. Não foste tu que me atiraste nos teus braços, nem foste tu que me devolveste à clausura. E eles têm razão. Já não dói.

Há alinhamentos de curvas no céu, melancolias de berço, extremidades que atentam um colo que se pede.

Moro num vale assombrado de um musgo mistério e benzido por uma cordilheira de  auroras platinas. Nem sei quem toca em quem. Só sei que os sinto tocarem-se e tocarem-me. Vivo quotidianamente, enquanto vejo o mundo a passar, no extraordinário. São as nuvens que me calam as calamidades e me ditam que te abrace. E eu só quero dizer-te que este abraço é até que eu deixe de ser, como as nuvens.

Tenho sorte de morar no coração de Deus, e de o saber.

Conceição Sousa

 


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