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quinta-feira, 22 de maio de 2014

3* A morte da inocência é o fim.

3*
A morte da inocência é o fim.
A morte da inocência é o fim. E o rastilho. Tudo o que vem a seguir é prolongamento – porque é mais do mesmo, porque mói e mói e mói, porque nem anda nem desanda, porque morreu e apodrece a morrer e escarafuncha no não haver, porque consome o que já rompeu de gasto e continua a ralar –, tudo o que vem a seguir, permitam-me a redundância, é o inferno.
“Olá! Pensavas que nunca até mim virias? Olá! Um abracinho só, vá, não te encolhas, deixa de ser tolhida, só um toquezinho…”
A morte da inocência é a catástrofe. Quando o alumiar da vela se extingue, o que sobra? Rebordos calcinados, curvas ásperas e o bafo quente do teu hálito na penumbra que se reveza penumbra e mais penumbra, a sufocar.
“Chega p’ra lá, apre! Deixa-me respirar. Dá-me espaço, dá-me espaço.”
A perna que não se atreve a estirar, o terror do toque, um sinal e ele vem, abocanhar-me toda, engolir-me, não, não… Um ínfimo ponto, a apartar o asco.
Sonha o retorno da inocência, o dedilhar ingénuo, o sorriso ao acaso. Suspira a infância nos passos simples, o contemplar deslumbrado das horas que não se contam, do regresso aos segundos eternos, à magia dos pássaros que se constroem com conchas do mar.
“E voa? A sério? Voa mesmo? Como pôde um mudo construir umas asas de anjo num pássaro de iodo?”
É isso, viver. Passar o ciclo das auroras e dos crepúsculos em torno das asas de um pássaro de iodo, impossibilitado de falar; apagar os ruídos devassos do mundo no interior de cada concha que se cimenta; deslocar a retina no embalo do reclinar de testa e espantar-se junto com as penas que voam do pássaro.
“Vou, vou mesmo, aguarda-me… já me vês? Vês como voo? Não? Ah, sim, só as penas…”
Restaura o toque da inocência no silêncio que circunda a imponência do pássaro de iodo. Entrelaça os dedos enquanto sentes que a derradeira concha não deve ser posta, enquanto o mundo desconhece essa voz que nunca ouviu só porque não quer ser ouvida e não vale as penas do pássaro que a ouçam.
É isso, viver. Não vá o pássaro de iodo com asas de anjo e escultor mudo querer sair por aí a voar, não vá a inocência nunca mais querer voltar.
Ao inferno impede a demora um olhar húmido e mudo de iodo, uma derradeira concha pousada no coração de um anjo sem asas e a veleidade de um gesto que se trava –
para que o pássaro não se sinta completo e voe na direção do infinito.
“Quem tomaria conta de nós se a inocência partisse? Aquela pena há-de faltar sempre ali. A concha? Guardo-a no meu peito.”

Conceição Sousa

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