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sábado, 24 de maio de 2014

5* Aflige-a a correria

5*
Aflige-a a correria
Talvez porque já tenha corrido muito, e durante uma eternidade, e continue a correr, aflige-a, de sobremaneira, a correria –
e trava-a.
Sim, devagar, com mais calma… e intervalos, porque não?
 
Dantes era porque era urgente acabar com a fome, destituir a miséria, abraçar todos os que ama num xaile de amparo cómodo, restituir a força a quem se esvaziou de sonhos pelo vagar dela.
E foram, assim, duas extenuadas décadas a consumir-se até às vísceras, numa redoma fabril, onde nenhuma pausa se impunha ao ritmo acelerado das linhas de montagem, em que uma só funcionária, uma só, engolia toda a matéria-prima e expelia toda a produção; em que uma só funcionária, uma só, produzia tanto mas tanto mas tanto que distribuía à exportação. E exportava: exportava: exportava.
A miséria em redor desacelerou. A fome quase que se extinguiu. Os xailes multiplicaram-se. A força tornou-se contágio. A funcionária quebrou segundos antes de subir de posto. Disfarçou e subiu na queda.
Depois era porque era urgente acabar com as desigualdades. Havia que diminuir o impacto do afastamento de quem ficou para trás. E mais uma década na correria. A promoção era boa, mas, sem companhia, de que lhe valia? Tinha de produzir mais, descer à linha de montagem, ajudar quem lá estava a engolir toda a matéria-prima e a expelir toda a produção. E exportava: exportava: exportava.
Mais um subiu de posto, segundos antes de quebrar; contudo a quebra deu-se por um motivo diferente… não era a extenuação a razão da quebra, era o “tens-a-mania-de-que-és-melhor-do-que-toda-a-gente”, subiu e disfarçou, não a queda, a distância a derramar-se.
Ela continuou a subir na queda, e a fazer-de-conta. Um beco sem saída impõe um faz-de-conta, certo? E se é para continuar a queda mais vale que se suba, não? Se calhar não. Mas que faço? Paro e deixo-me cair?
Se ao menos a máquina desacelerasse.
Estás enganado. A máquina está parada. Quem não desacelera é a funcionária, raios! Não sabe desacelerar. Não consegue. Faz intervalos, cada vez mais longos, vá lá…
Descobriu que tem mesmo de fazer intervalos, longos, se quer companhia. Percebeu que não vale a pena correr. Correu tudo na partida, nos primeiros metros, agora está só. Precisa de aprender a não correr mais, mas o peito puxa, o rosto avança, o embalo não quebra, e o vento que não é vento empurra, o passo estica… que há-de fazer? Toda ela pede, toda ela pede, não tem como não lhe dar o que toda ela pede, e continua. Não sabe a distância do horizonte, parece-lhe mesmo que quanto mais corre, mais distante ele se projecta. Deixou de o observar, ao horizonte. Apenas contempla os intervalos, cada vez mais longos, dessa corrida que não acaba. E espera que um dia alguém se aproxime para intervalar com ela.
Sim, devagar, com muita mais calma, sim?
Se é p'ra cair, tenho tempo.

Conceição Sousa

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