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sábado, 24 de maio de 2014

7* Só o giro interessa



7*

Só o giro interessa

Sei que, logo ali, na despedida da infância, à porta da adolescência, fiquei condicionada, fui condicionada.  Sou curiosa de saber como teria sido se, normalmente, como outra criança qualquer, em qualquer parte tranquila do mundo, tivesse podido continuar a caminhar sem grandes sobressaltos nem parvas euforias ou medonhas agonias. Sim, como outra criança borbulhenta qualquer, como teria sido?... Intuo que nada do que me tornei hoje existiria.

Não consigo evitar de sentir todas as dores advindas como um  prémio. Sim, um prémio em direcção à optimização da inteligência emocional. Só para que entendam melhor, Malala Yousafzai, a menina a quem deram um tiro por defender a escolarização das meninas e teimar em ir à escola, ganhou um prémio muito antes de o ter ganho de facto, dores especiais que a brindaram com uma inteligência emocional extrassensorial – nem dá sequer para imaginar o estádio evolucional em que esta menina-deusa se encontra ( faço-lhe vénia!).

 Há quem demore séculos a estudar a fórmula perfeita do comprimido exacto ao impulso dessa optimização. Pois eu digo-vos: perfeita idiotice. Basta uma dorzinha qualquer e a sinapse desenrola-se, as células nervosas congeminam no caminho umas das outras e, pimba!, mais uma nuvem de massa cinzenta, mais uns centímetros sem que a ressonância magnética tenha de concretizar-se para percebermos que um cantinho de miolos massificou-se, num tom grisalho, sempre num tom grisalho, hum... Já pensaste por que raios o tom do amadurecimento é prateado? A melancolia é a cor física que comprova a evolução da inteligência emocional. Nada mais óbvio. A minha foi implantada muito antes da idade própria, daí que se perceba a extra-sensibilidade – pelo menos, eu percebo, e eu é que interesso, não?

A dor cai em nós como que um relâmpago, estatuificamos, em posição de meditação, cadeados que nos obrigam a pensar, a silenciar o ruído, a reflectir a intensidade da luminosidade para outro lado qualquer ( fez-se luz, mas é mais do que aquilo que um simples corpo consegue aguentar), a digerir o abalo, a equilibrar o sofrimento, e retemos… a bosta disto tudo é que a optimização da inteligência emocional optimiza tudo o resto, como por exemplo a memória, concede-nos uma memória de elefante, e recalcamos toda a vida aquela dor. Serviu para evoluirmos; acanhou-nos o discernimento. Levamos um choque elétrico e retivemos na nossa memória essa dor, essa tensão. Daí em diante, qualquer semelhança não é pura coincidência e a nossa inteligência emocional têm efeitos secundários muito adversos, reconhece todas as semelhanças e entra em choque: intimida-se, amedronta-se, sofre de ansiedade por antecipação, aterra no síndrome do pânico, e cega para a inteligência propriamente dita. Qual é? A de não haver consciência de que se o é: um ser inteligente.

Se há especialidade em que uma inteligência emocional é perita é em consumir-se. E toda a gente sabe ( basta observarmos um campeonato de xadrez, por exemplo) que se há especialidade em que o mestre é perito é em ficar cego para tudo o resto, daí que, não raras vezes, os principiantes suplantem os mestres. Pudera, também não vêem mais nada a não ser aquele pormenor em que se tornaram especialistas. Tolheram-se ao tamanho de uma ervilha, desocupando todo o restante espaço para quem vier.

Oxitocina: a hormona do amor, dizem. Nem sei se a tenho em abundância ou em relutância. Sei que me tornei especialista no amor e, a dada altura, deixei de ver tudo o resto – inclusive o amor.

 Nenhuma obsessão é boa. Esta não é diferente. Há que libertar as emoções para outros espaços, não familiares, tentar obter uma visão holística da coisa, conhecer e decifrar outros parâmetros de invasão. Há quem procure o elixir dessa captação, desse entendimento do outro sem a destituição da nossa própria identidade. Há quem observe e nomeie, é autista, só porque tem um mundo muito próprio, desprovido de filtros que os demais possuem, e jorre uma torrente de criatividade próxima do divino. P’ra que raio servem os filtros, pergunto? P’ra que raio servem os filtros? Há quem nos queira abocanhar com fármacos que ainda não foram inventados ( e ainda bem!), só para criar esses filtros que impeçam a criação ( antítese?), que permitam a uma dada inteligência impedir a criação porque a criação é o caminho – dizem – para incapacitar qualquer inteligência emocional de desabrochar e reconhecer outra inteligência emocional. Mas quem quer filtros? Dane-se os filtros. Os filtros são o arcabouço da humanidade.

A criação é mais intelectual, certo, é mais disciplinada, mais calculista… Sou capaz de concordar que a criação destitui a emoção, arrefece o sangue e banaliza o sensitivo. A criação  precisa do instintivo, do intuitivo,  do sensorial, no início, mas  consagra-se( metódica como só pode ser), acima de tudo, um acto especialista racional. E, como todos os actos especialistas racionais, arrefece, desumaniza-se humanizando, percebes? E contrai-se, porque só vê a sua especialidade. Tudo o resto deixa, como que por magia, de existir. E isso é muito mau. Péssimo, mesmo. Às vezes, um perfeito idiota, soluciona em segundos um problema que um especialista demora décadas a tentar. E porquê? Porque vê o bolo todo, enquanto que o especialista só está interessado na sua fatia. Ego?

É certo que uma inteligência emocional eficiente tenha limites. É o que se chama de dar um tiro no próprio pé – não que alguém tenha culpa de ter optimizado a sua inteligência emocional, calhou! –, porque se é mais eficiente para umas coisas, também o é para outras. E as memórias geneticamente e circunstancialmente melhoradas são-no para o bom e para o mau. Há que bloquear a nossa especialidade, a nossa obsessão, e canalizar energias para a libertação do ego na direção do novo, do não familiar. Criar novas formas de lidar com a informação: ser receptivo, ser sempre receptivo, mesmo que nos pareça uma perfeita idiotice.

Nenhuma especialidade, obsessão, é saudável. Há que domá-las, torneá-las, dançar os ritmos indígenas com elas, fechar  e abrir os olhos as vezes que forem necessárias até que um ínfimo ponto de diversidade surja – e mordê-lo com tudo, com dentes, com unhas, com garras, com tudo. E partir do novo, daquela estrela; deslizar nos seus feixes à amplitude do ângulo, o mais giro. Repara que até o que interessa na vida – deslumbramento, estou a falar de deslumbramento –, torneia-se num ângulo giro: abres a boca de espanto! ( é um ângulo giro!) O sorriso assume-se raso face a isto, mas 180º sempre é melhor do que a rectidão de  90º ou a insuficiência de  menos de 90º, certo? O acutângulo de um beijo sabe sempre a pouco, por isso queremos sempre mais. ( E nunca estamos satisfeitos, não é? Ao ponto de preferirmos, por vezes, o nulo!)

Repara que até o que interessa na vida perfaz os 360º, abre-se num círculo de infinitude. Daí que todos busquemos o giro que é do abraço e caiamos na amplitude exacta da lágrima. E tu és mesmo giro! Sou tão emotiva!

Conceição Sousa

 


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