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Pinceladas de divino
– Ó filha, assim assustas-me! – aterra-me o meu pai, um agnóstico ateu com um altar de santos no canto mais canto do quarto, com velas acesas e tudo, a ver-se-me-sai-o-euro-milhões-só-por-isso-e-ainda-os-deito-todos-abaixo-porque-tá-visto-que-assim-é-que-não-sai…
Eu reparo que ele não repara no meu sorriso de esquina, malandro e a consentir, talvez porque se catapulte dos miolos à velocidade da alma (dizem que bosões de vezes superior à da luz, fracções de fracções de fracções milimétricas de segundos), e se perca de massa ali um nadinha antes do nervo do lábio: fica-se pelo trejeito mordido.
– Olha pela janela, mas olha com atenção, não vês? As lombadas da montanha verde musgo, como que braços a aconchegar-nos; o azul aguarela de ante crepúsculo, a ser pincelado com o azul arroxeado daquele algodão ali, e está bem-humorado porque tingiu para a esquerda e naquelas nuvens logo a seguir gargalhou um violácea para a direita. Não vês? Como é possível, no mesmo instante e num tão exíguo espaço, o vento deslocar-se em direções opostas? Não vês que é Ele a brincar, a esborratar-nos de divino? – clamei, com o sorriso esquivo, gasto de matéria, estancado na ponta da língua.
O meu pai petrifica, incrédulo, estátua, de mão ao alto, boca entreaberta, sem um pestanejar, e quase só a ver-se o branco do olho. Pressinto que sente o que verbalizo, mas resiste, não quer crer. Zangou-se com o divino lá muito atrás na transição de peles e resumiu a sua existência a quando-me-sair-o-euromilhões-eu-creio. Num esforço vão, tento explicar-lhe que Deus não é assim e que é por isso que nunca vai sair-lhe o euromilhões, dinheiro, estamos a falar de dinheiro. Continuo, quase sem fôlego, como que a dizer-lhe “olha para mim, caramba!, não sou eu prova suficiente de que Deus está contigo, homem?”
– Ai, filha, para. Ainda me causas um ataque cardíaco. Falas com tanta certeza que me assustas. Não fales assim lá fora, olha que o mundo é cruel e as pessoas vão apreciar-te como se aprecia uma coisa rara, invulgar. Vais sentir-te numa jaula, uma aberração de circo, a ser apontada , ‘tadinha da doida!, o mundo é assim, não compreende quem é diferente. Mas por que raios havias tu de ver essas coisas do divino em tudo o que é natureza, ó meu Deus?
E o sorriso lá se projecta, de novo, em catadupas de terminações nervosas bem cimentadas de magnésio, mas perde-se em fulgor ali pelas quebras de músculos faciais, e a partícula partícula, aquela de Higgs, não se consubstancia a tempo de elevar um cantinho tonificado de lábio. Contudo está lá, o sorriso, bem amplo, bem entregue, sem que o receptor o perceba. Uma alma sorri a outra alma e o corpo não chega para que ambas se vejam, para que ambas comuniquem, mas o sorriso existe. Se o sorriso existe e não é visto, pensa, por que não há-de Deus existir, sorrir, e não ser visto. Talvez o sorriso de Deus se fique, ali, pelo entremeado boreal das nuvens, naquela monção de pinceladas caóticas, e não consiga consubstanciar-se em bosão, matéria.
– Pai, só mais uma, por favor, vê bem, estica o olhar, aquelas outras nuvens alongadas ali, um kebab nupcial, várias camadas de branco reluzente… donde virá tanta luz já que o sol se foi? Sabes o que pode ser? Talvez um ovni, extraterrestres numa nave silenciosa híper-evoluida, a perscrutar-nos; ou o divino, quase a conseguir mostrar o caminho para o abraço infinito… o tanto que sei que está e não se vê.
Temo que lhe tenha tolhido as ideias, ou talvez não; se calhar sente-se agora mais acompanhado, mais pacificado. São tantos os apelos simples da natureza a todos os nossos sentidos: a brisa entrecortada de fim de tarde, aragem a eucalipto; os pirilampos num lusco-fusco; as vozes de outros seres, dos grilos, dos cães, um som de fundo quase que silêncio mas ruidoso ( o silêncio ante crepúsculo, fala demais, não se cala); as cócegas da ramagem que sopra a neve das alergias, só para nos tocar, nos provocar, e causar uma resposta:
–Aaaaaaaatchim!
Não sei o que falei, mas tu entendeste que sim, que te respondi e que te toquei. P’ra que precisas de saber mais? Se nos tocamos, se interagimos, seja lá de que maneira for, é porque existimos, é porque comunicamos, e se comunicamos é porque nos estamos a amar, mesmo que disso nada saibamos.
Beijo-te ( e não sei).
Conceição Sousa
Pinceladas de divino
– Ó filha, assim assustas-me! – aterra-me o meu pai, um agnóstico ateu com um altar de santos no canto mais canto do quarto, com velas acesas e tudo, a ver-se-me-sai-o-euro-milhões-só-por-isso-e-ainda-os-deito-todos-abaixo-porque-tá-visto-que-assim-é-que-não-sai…
Eu reparo que ele não repara no meu sorriso de esquina, malandro e a consentir, talvez porque se catapulte dos miolos à velocidade da alma (dizem que bosões de vezes superior à da luz, fracções de fracções de fracções milimétricas de segundos), e se perca de massa ali um nadinha antes do nervo do lábio: fica-se pelo trejeito mordido.
– Olha pela janela, mas olha com atenção, não vês? As lombadas da montanha verde musgo, como que braços a aconchegar-nos; o azul aguarela de ante crepúsculo, a ser pincelado com o azul arroxeado daquele algodão ali, e está bem-humorado porque tingiu para a esquerda e naquelas nuvens logo a seguir gargalhou um violácea para a direita. Não vês? Como é possível, no mesmo instante e num tão exíguo espaço, o vento deslocar-se em direções opostas? Não vês que é Ele a brincar, a esborratar-nos de divino? – clamei, com o sorriso esquivo, gasto de matéria, estancado na ponta da língua.
O meu pai petrifica, incrédulo, estátua, de mão ao alto, boca entreaberta, sem um pestanejar, e quase só a ver-se o branco do olho. Pressinto que sente o que verbalizo, mas resiste, não quer crer. Zangou-se com o divino lá muito atrás na transição de peles e resumiu a sua existência a quando-me-sair-o-euromilhões-eu-creio. Num esforço vão, tento explicar-lhe que Deus não é assim e que é por isso que nunca vai sair-lhe o euromilhões, dinheiro, estamos a falar de dinheiro. Continuo, quase sem fôlego, como que a dizer-lhe “olha para mim, caramba!, não sou eu prova suficiente de que Deus está contigo, homem?”
– Ai, filha, para. Ainda me causas um ataque cardíaco. Falas com tanta certeza que me assustas. Não fales assim lá fora, olha que o mundo é cruel e as pessoas vão apreciar-te como se aprecia uma coisa rara, invulgar. Vais sentir-te numa jaula, uma aberração de circo, a ser apontada , ‘tadinha da doida!, o mundo é assim, não compreende quem é diferente. Mas por que raios havias tu de ver essas coisas do divino em tudo o que é natureza, ó meu Deus?
E o sorriso lá se projecta, de novo, em catadupas de terminações nervosas bem cimentadas de magnésio, mas perde-se em fulgor ali pelas quebras de músculos faciais, e a partícula partícula, aquela de Higgs, não se consubstancia a tempo de elevar um cantinho tonificado de lábio. Contudo está lá, o sorriso, bem amplo, bem entregue, sem que o receptor o perceba. Uma alma sorri a outra alma e o corpo não chega para que ambas se vejam, para que ambas comuniquem, mas o sorriso existe. Se o sorriso existe e não é visto, pensa, por que não há-de Deus existir, sorrir, e não ser visto. Talvez o sorriso de Deus se fique, ali, pelo entremeado boreal das nuvens, naquela monção de pinceladas caóticas, e não consiga consubstanciar-se em bosão, matéria.
– Pai, só mais uma, por favor, vê bem, estica o olhar, aquelas outras nuvens alongadas ali, um kebab nupcial, várias camadas de branco reluzente… donde virá tanta luz já que o sol se foi? Sabes o que pode ser? Talvez um ovni, extraterrestres numa nave silenciosa híper-evoluida, a perscrutar-nos; ou o divino, quase a conseguir mostrar o caminho para o abraço infinito… o tanto que sei que está e não se vê.
Temo que lhe tenha tolhido as ideias, ou talvez não; se calhar sente-se agora mais acompanhado, mais pacificado. São tantos os apelos simples da natureza a todos os nossos sentidos: a brisa entrecortada de fim de tarde, aragem a eucalipto; os pirilampos num lusco-fusco; as vozes de outros seres, dos grilos, dos cães, um som de fundo quase que silêncio mas ruidoso ( o silêncio ante crepúsculo, fala demais, não se cala); as cócegas da ramagem que sopra a neve das alergias, só para nos tocar, nos provocar, e causar uma resposta:
–Aaaaaaaatchim!
Não sei o que falei, mas tu entendeste que sim, que te respondi e que te toquei. P’ra que precisas de saber mais? Se nos tocamos, se interagimos, seja lá de que maneira for, é porque existimos, é porque comunicamos, e se comunicamos é porque nos estamos a amar, mesmo que disso nada saibamos.
Beijo-te ( e não sei).
Conceição Sousa
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