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sábado, 31 de maio de 2014

12* Insignificância


12* Insignificância

 

                Há objectos que existem para me lembrar da minha insignificância – é uma frase arrogante de tão egocêntrica e despudorada, mas é assim mesmo, o objecto só existe em função de mim, para que eu saiba o quão insignificante sou ( sou mesmo importante não?). Há objectos que faço questão de ter bem perto ( tipo terapia de choque, mordiscadela de acorda!, aferroada de “toma lá que é para não te atirares aos cães!”) só para que nunca me esqueça da minha soberba insignificância: sei.

                O que não te perdoo, e não te perdoo mesmo, é que, caso não seja assim, tão insignificante como queres que eu sinta que sou, caso seja exactamente o extremo oposto, sofras dessa maneira tão parva, tão jumenta, tão linear de quem não percebe nada do que anda cá a fazer, ó pessoa ida!

                Ora diz-me lá se há alguma lógica no que se segue:

·         Amas-me tão enervantemente que quando te enervas dizes que me odeias. ( Em que é que ficamos?)

·         Amas-me tão obsessivamente que quando me queres ( e tudo o que tu queres é só querer-me) fazes este mundo e o outro para que não te queira.

·         Amas-me tão intrinsecamente que no exterior tudo o que jogas é às escondidas: passas a vida a olhar-me, mas não convém que te veja, não vá eu bater no muro “ um, dois, três, vi-te!” e ser a minha vez de esconder. ( Tens medo de nunca mais me encontrar, é? Se não me encontro, não te encontro, certo?)

·         Amas-me tão levianamente que quando me “f****” é sempre a valer ( ai, e como vale!), é pena que te calhe  o reverso da palavra, o mais ingrato, o que me faz carpir o caminho do que se tem asco e perguntar “ Por que me queres tão mal? Por ti mesmo sei que nunca quererias, seria o exactamente oposto: o bem-bom da palavra, ora “f******”! ( fica-te! – que pensavas? –, fica-te e desiste desse pau, mau jeito de amar.)

·         Amas-me tão ingenuamente que na inocência de te ser doce perdes-te na confecção de uma geleia melosa e peganhenta, e o mais que resulta  é um lambuzar guloso que em nada cola o genuíno amor que pensas que me tens.

 

Sossega, tu, que nem estás a ler isto… ora não sou eu insignificante? Como dizia lá acima, há objectos ( e pessoas) que só trago comigo para que me lembrem do quão insignificante estou neste pedaço de carne, que me embala num berço a que chamam de tempo. E, garanto-te, o mais que me importa é o tom do abalo, sussurro doce e lento, a inclinar as pálpebras na direção do escuro, janela fechada para o mundo e aberta para os braços do que nos dá colo…

Quando se é insignificante assim, há toda uma significância da vida que nos irrompe pela alma adentro. Temos mesmo de fechar os olhos, induzir o sono, porque a vida, de tão bela e extraordinária , cega-nos a vista. E a senti-la é por um fiozinho de olhar, a experimentar meias-luas, porque é na neblina que a verdade acontece, é no fosco que a realidade se consuma,  é no mate, apanhado de duas malhas, sem brilho, que o lance irrompe e  se desvenda: sorriso e gratidão.

De ti só quero mesmo é que me lembres que sou insignificante.

Há objectos bem duros que não podem, de modo algum, despencar da nossa mão.

Catástrofe!

Conceição Sousa

11*

11*

“ Sou a toalha onde descansas os teus sonhos”,
o indicador a atravessar a fala,
“Envolve-me”,
os lábios à procura do lugar onde o orvalho consinta um breve fôlego. 
“ É o teu rosto nos sulcos deste pano”,
a encosta que escorre, devagar, em tom de procissão,
“ é o teu rosto que pregam e não sabem que só eu o trajo”,
linguajar na subida para onde as águas vertem,
“ linda mulher, que nunca quis ser minha e é tão dela”,
a neblina a avisar que o calor se aproxima e que é hora dos poros encharcarem,
“linda mulher, que nunca quis ser minha e é tão dela”
o grito cavernoso.
“ Faz de mim as rugas que te beijam o pé descalço”,
“ Faz de mim o arrepio que te devolve os olhos.”
E ela não faz.
E ele continua a trajá-la.
E os ombros querem que não se façam e que não se queiram.
Os ombros só querem que os deixem ser ombros. E que lhes permitam querer.
Vens?
Vou?

Conceição Sousa

quarta-feira, 28 de maio de 2014

10* Já não dói



10* Já não dói.

 

                Sei querer – e sei que, quando quero, quero muito. E quem não quer?

                Mas também sei sentir. Faço por isso: por saber sentir. E sei que me dói sem que te doa a ti. E sei que a mágoa é minha – tão só minha. E sei que é tolice exigir a alguém um sentimento que é só meu. Por que haveria esse alguém de sentir o meu sentimento, pensa?

                O desacerto das pessoas é quererem obrigar as outras pessoas a sentir o que tão somente é sentimento delas: unipessoal. É bonito? Parabéns! Usufrui, agarra-te com unhas e dentes a esse sentimento, pois só o que sentes e é teu é válido, genuíno –

mas não o imponhas ao outro,

mesmo que o objecto desse teu olhar tão límpido, tão brilhante, principalmente se o impulso desse teu estado de devaneio feliz.

Não o imponhas.

Ao trespassares o teu horizonte de encanto, invades a neblina de um outro mundo que não o teu, repara: invades,

e observas-te, no lado de lá, deserção de ti mesmo, no lado de cá, fenda irreparável, quebra de identidade, coisa feia e violenta.

E p’ra quê? P’ra que te apedrejem de volta? E com razão. Quem te deu licença de pisar em território ocupado? Ou para que vires o sangue do avesso e ele se verta inexistência condenável?

Há um sentir nublado, p’ra lá do enlevo da montanha, que não o teu. Despede-te. E despe-te da arrogância. Nada te é posse. Muito menos aquilo que ao outro pertence: o seu sentimento.

Sopra-lhe um beijo quando o vires, ao teu arrogar-se; testemunha-lhe o teu sorriso, aquele que ficou lá atrás, junto a uma espada empunhada contra o céu, o vosso troféu, e aguarda um reflexo – luminosidade, talvez…

Às vezes, acontece, um reflexo, um espelho de água, umas nano-vagas que ondulam a brisa do teu leve aceno. Vi-te, tocaste-me, levei-te no meu ombro para sermos felizes. Um segundo em que dois sorrisos se olharam e algo de extraordinário aconteceu: o teu sentimento confessou-se o meu.

Um segundo de invasão basta-me.

Um segundo de invasão de que não tenho remorsos. O que é um segundo de invasão quando comparado com quase um século corpóreo e mais de um milénio de vida? Comungada com milhões de tantas outras vidas; algumas ainda nem sabem que estão para nascer e para morrer. Digo-te já: mais de um milénio e outro tanto. E olha que tenho um dom.

As nuvens trazem cinzas carregadas de rebordos prateados e falam-me, a todo o instante, desses teus milénios. Um bem tão grande às pessoas, à humanidade. As nuvens sabem. Agora, também tu ficaste a saber.

Um anjo com asas de zinco segredou-me o teu caminho e sossegou-me. Pediu-me desculpa, sabes? Disse que não conseguia falar-te e precisou de me atirar nos teus braços para que pudesses tropeçar naquela imagem,

a que só a ti estava destinada.

Diz-me, agora mesmo, que está orgulhoso de ti. Que soubeste receber a ternura dos beijos que sopram os ares da humildade do instante, e que o tempo em ti deixou de contar: só o que tocares será sorriso e destino. Mas isso tu sabes.

Não me tocas. Não serei sorriso. Não serei destino.

Não fiques triste. Sei me alegrar, sem invadir mais do que um segundo.

O anjo com asas de zinco pede-me desculpa, conhece a minha dor. Diz que lhe falaram de mim como mensageira, e que nem foi descuido nem nada, precisamente por anteciparem o meu coração de chumbo. Tinham plena certeza de que o abriria, só mais uma vez, especialmente para ti (está explicada a minha surpresa!); que te deixaria entrar, te comunicaria o calor dos astros, e te expulsaria com eles.

Doeria o retorno ao claustro, avisaram. Não encontraram, contudo, mais ninguém que pudesse tocar-te e sobreviver de novo ao glaciar, com um segundo apenas de invasão.

Perdoei-lhes, sabes. A todos eles, os que congeminaram. A ti não há o que perdoar. Não foste tu que me atiraste nos teus braços, nem foste tu que me devolveste à clausura. E eles têm razão. Já não dói.

Há alinhamentos de curvas no céu, melancolias de berço, extremidades que atentam um colo que se pede.

Moro num vale assombrado de um musgo mistério e benzido por uma cordilheira de  auroras platinas. Nem sei quem toca em quem. Só sei que os sinto tocarem-se e tocarem-me. Vivo quotidianamente, enquanto vejo o mundo a passar, no extraordinário. São as nuvens que me calam as calamidades e me ditam que te abrace. E eu só quero dizer-te que este abraço é até que eu deixe de ser, como as nuvens.

Tenho sorte de morar no coração de Deus, e de o saber.

Conceição Sousa

 


9* Só porque tu

9*
Só porque tu
Acredito nesta vontade que passa de mim para ti e de ti para mim.
Acredito no silêncio quando a porta se tranca no limite da fúria indomável.
Acredito nas lágrimas que tecem o rebordo do que se quer enlaçar mas não encontra o ponto de amarra, apenas de elos que se encandeiam na direção da cabeceira extenuada.
Acredito na voz do que nos roga um caminho e nos dita reinícios atrás de reinícios, em cada ranger de madeira, em cada sussurro de “diz-me… diz-me…”, dedos a comprimir bocas extasiadas, incansavelmente a saliva “diz-me…”
Acredito nos teus braços quando me soltas o cabelo e seguras os olhos, à luz de velas, guardião do nosso templo, ao sabor do incenso indiscreto.
A vergonha fugiu quando lhe dissemos que há luzes a dar horas em despertadores que não se apagam. De duas em duas tacadas quiseram acordar-nos, ingénuos… Como se acorda a insónia dos amantes?
E foi às apalpadelas que os lençóis granulados nos embrulharam. A ternura é doce, sabias? Tivemos de sacudi-la. Há instantes que exigem ferocidade. E nós somos arrebunhar lento de roupas dispersas e rasgos calejados. Resgatámo-la em pleno voo e trouxemo-la para a nossa almofada, não sem antes lhe ensinarmos o depenicar dos pombos, desde o sacro até ao nunca, via lacrimal no despudor das nossas costas.

Acredito nos teus braços quando me soltas o cabelo, sabias?
E me seguras os olhos.
Há um beijo que me dedicas de cada vez que te cubro de nós, só porque tu, só porque tu…
E pergunto mil suspiros em que esplanada desertaste o orgulho.
“Leva já longas férias, velhinha…”, respondes de língua comprometida, a torcer o rubro de um mundial que ninguém esquece, embora todos ignorem. Abraças-me. E adormeces na minha nuca o sono dos felizes.
Respeito o nosso sorriso.
Acredito que todas as mágoas trabalham no indizível e servem o amor que cresce no silêncio das barbas grisalhas. Acredito que o que não se explica é a resiliência, nascente de um imparável rio.

Conceição Sousa

segunda-feira, 26 de maio de 2014

8* Um alien


8*

Um alien

Um kg de rojões com carne, com osso e com courata. Um kg de ameijoa. Duas gelatinas: uma de morango e uma de ananás. Uma mousse de chocolate. Duas doses de sorriso e cinco fatias de abraço. Prontinha p’ra chegar a casa, pôr o homem a cozinhar e espalhar doçura no rosto cintilante dos filhos. Todas as famílias felizes são um pouquinho gorduchinhas, só um pouquinho. Quem resiste a um mimo de chocolate? Só para procurar estrelas cintilantes em dentições convertidas à religião do hmmm! O Ioga perfeito.

“Ó mamã, és do outro mundo!”

Não soubera eu, acabava agorinha mesmo de ser informada. Como é possível que os nossos filhos, de todos, acertem o alvo no ponto exacto do conhecimento de nós mesmos? E começam lá longe, no reflexo de sucção.

“Só mais dois euros, vá… Ó mamã, és mesmo do outro mundo!”

“Como sabes? Vieste de lá, foi, patanisca?”

Gargalhada ao cubo quanto dá? Depende do ponto de partida. A primeira açoitadela de cabeça  vale por quantos? Nós três. Nós? Três nós?

“Tu é que dizes que te damos um nó na cabeça. Uma gargalhada deve valer por três. Se te damos um quando te zangas.”

 Não seremos cinco? Ok, consinto. Seja três perdigotos por cada açoitadela de gargalhada nos óculos que não usas, pá ( ou será que usas? Já não me lembro…)! Quanto dá então gargalhada ao cubo? Se for mágico dá… deixa lá ver… pelo menos nove faces coloridas, doze não será? – e um texto esquizofrénico.

 Gelatina! Gelatina! Gelado, queres tu dizer.

“Trouxeste, mamã, gelado?”

“Sou do outro mundo, mas não me perco, filhote: 27: 3x3=9x3=27 27: 3x3=9x3=27

Íamos no reflexo de sucção que vem de lá longe, da teta, e de tudo o resto, porque a sofreguidão conecta-se com tudo o que seja tocável, dê alimento ou não. Há ainda outro reflexo ante-comunicativo, a mãozinha que ergue para se proteger da dor, da fralda que cobre o rosto enquanto suga o leite (“ Deixa-me respirar, caraças! Está tudo às escuras!”), da fralda pronta a secar a saliva teimosa no canto da boca. E não gostas, eu sei que não gostas, pá, mas tem de ser. Tem de ser. Eu sei mais do que tu: precisas de te alimentar e de estar limpinho, senão gretas aí esse cantinho de lábio maroto. A mão que ergues para afastar o pano, para te proteger da dor, não protege de nada, só estorva. É a minha mão teimosa, com esse pano seguro, que te vai impedir de ferir – e de doer.

Choras? Competência básica. Comunicas. Um bebé sem sílabas chora para comunicar e ri para comunicar. Precisaremos nós de saber muito mais? Dói, não falas, choras. Eu ouço, e socorro-te. Ou não… Tens fome, não falas, choras. Eu ouço, e socorro-te. Ou não… Sentes-te só, no quarto ao lado, não falas, choras. Eu ouço, e socorro-te, mas dizem que não devo ir logo a correr para não te habituar mal, senão vais chorar toda a vida, eu vou desesperar de tanto ecoares o teu grito no meu ouvido e vamos acabar por não nos suportar um ao outro.

Ris em busca da tranquilidade. Ris nas primeiras horas de vida. “Está a sonhar, ‘tadinho.” Já vens do ventre a rir, que mistério é este, caramba? Imitas os sons, os gestos, o toque, os passos,  as palavras… Imitas o que vês, o que ouves, o que intuis. Imitas e aprendes. Imitas e  transformas-te – às vezes em miau!miau!, em au!au!, em mémé!...

É só ir lá atrás, à linguagem dos bebés, para percebermos a filosofia da vida. Toda a santa vida é este inferno celestial ou este céu infernal nos relacionamentos. Choras porque tens de chorar: é acto reflexo de origem. Sobrevivência.  Ris porque tens de rir: é acto reflexo de origem. Sobrevivência. Imitas porque tens de imitar: é acto reflexo de origem. Sobrevivência.  Sugas porque tens de sugar: é acto reflexo de origem. Sobrevivência.

Qual é a dúvida?

Já sei. Sou do outro mundo. E vim de lá a rir.

Conceição Sousa

 

sábado, 24 de maio de 2014

7* Só o giro interessa



7*

Só o giro interessa

Sei que, logo ali, na despedida da infância, à porta da adolescência, fiquei condicionada, fui condicionada.  Sou curiosa de saber como teria sido se, normalmente, como outra criança qualquer, em qualquer parte tranquila do mundo, tivesse podido continuar a caminhar sem grandes sobressaltos nem parvas euforias ou medonhas agonias. Sim, como outra criança borbulhenta qualquer, como teria sido?... Intuo que nada do que me tornei hoje existiria.

Não consigo evitar de sentir todas as dores advindas como um  prémio. Sim, um prémio em direcção à optimização da inteligência emocional. Só para que entendam melhor, Malala Yousafzai, a menina a quem deram um tiro por defender a escolarização das meninas e teimar em ir à escola, ganhou um prémio muito antes de o ter ganho de facto, dores especiais que a brindaram com uma inteligência emocional extrassensorial – nem dá sequer para imaginar o estádio evolucional em que esta menina-deusa se encontra ( faço-lhe vénia!).

 Há quem demore séculos a estudar a fórmula perfeita do comprimido exacto ao impulso dessa optimização. Pois eu digo-vos: perfeita idiotice. Basta uma dorzinha qualquer e a sinapse desenrola-se, as células nervosas congeminam no caminho umas das outras e, pimba!, mais uma nuvem de massa cinzenta, mais uns centímetros sem que a ressonância magnética tenha de concretizar-se para percebermos que um cantinho de miolos massificou-se, num tom grisalho, sempre num tom grisalho, hum... Já pensaste por que raios o tom do amadurecimento é prateado? A melancolia é a cor física que comprova a evolução da inteligência emocional. Nada mais óbvio. A minha foi implantada muito antes da idade própria, daí que se perceba a extra-sensibilidade – pelo menos, eu percebo, e eu é que interesso, não?

A dor cai em nós como que um relâmpago, estatuificamos, em posição de meditação, cadeados que nos obrigam a pensar, a silenciar o ruído, a reflectir a intensidade da luminosidade para outro lado qualquer ( fez-se luz, mas é mais do que aquilo que um simples corpo consegue aguentar), a digerir o abalo, a equilibrar o sofrimento, e retemos… a bosta disto tudo é que a optimização da inteligência emocional optimiza tudo o resto, como por exemplo a memória, concede-nos uma memória de elefante, e recalcamos toda a vida aquela dor. Serviu para evoluirmos; acanhou-nos o discernimento. Levamos um choque elétrico e retivemos na nossa memória essa dor, essa tensão. Daí em diante, qualquer semelhança não é pura coincidência e a nossa inteligência emocional têm efeitos secundários muito adversos, reconhece todas as semelhanças e entra em choque: intimida-se, amedronta-se, sofre de ansiedade por antecipação, aterra no síndrome do pânico, e cega para a inteligência propriamente dita. Qual é? A de não haver consciência de que se o é: um ser inteligente.

Se há especialidade em que uma inteligência emocional é perita é em consumir-se. E toda a gente sabe ( basta observarmos um campeonato de xadrez, por exemplo) que se há especialidade em que o mestre é perito é em ficar cego para tudo o resto, daí que, não raras vezes, os principiantes suplantem os mestres. Pudera, também não vêem mais nada a não ser aquele pormenor em que se tornaram especialistas. Tolheram-se ao tamanho de uma ervilha, desocupando todo o restante espaço para quem vier.

Oxitocina: a hormona do amor, dizem. Nem sei se a tenho em abundância ou em relutância. Sei que me tornei especialista no amor e, a dada altura, deixei de ver tudo o resto – inclusive o amor.

 Nenhuma obsessão é boa. Esta não é diferente. Há que libertar as emoções para outros espaços, não familiares, tentar obter uma visão holística da coisa, conhecer e decifrar outros parâmetros de invasão. Há quem procure o elixir dessa captação, desse entendimento do outro sem a destituição da nossa própria identidade. Há quem observe e nomeie, é autista, só porque tem um mundo muito próprio, desprovido de filtros que os demais possuem, e jorre uma torrente de criatividade próxima do divino. P’ra que raio servem os filtros, pergunto? P’ra que raio servem os filtros? Há quem nos queira abocanhar com fármacos que ainda não foram inventados ( e ainda bem!), só para criar esses filtros que impeçam a criação ( antítese?), que permitam a uma dada inteligência impedir a criação porque a criação é o caminho – dizem – para incapacitar qualquer inteligência emocional de desabrochar e reconhecer outra inteligência emocional. Mas quem quer filtros? Dane-se os filtros. Os filtros são o arcabouço da humanidade.

A criação é mais intelectual, certo, é mais disciplinada, mais calculista… Sou capaz de concordar que a criação destitui a emoção, arrefece o sangue e banaliza o sensitivo. A criação  precisa do instintivo, do intuitivo,  do sensorial, no início, mas  consagra-se( metódica como só pode ser), acima de tudo, um acto especialista racional. E, como todos os actos especialistas racionais, arrefece, desumaniza-se humanizando, percebes? E contrai-se, porque só vê a sua especialidade. Tudo o resto deixa, como que por magia, de existir. E isso é muito mau. Péssimo, mesmo. Às vezes, um perfeito idiota, soluciona em segundos um problema que um especialista demora décadas a tentar. E porquê? Porque vê o bolo todo, enquanto que o especialista só está interessado na sua fatia. Ego?

É certo que uma inteligência emocional eficiente tenha limites. É o que se chama de dar um tiro no próprio pé – não que alguém tenha culpa de ter optimizado a sua inteligência emocional, calhou! –, porque se é mais eficiente para umas coisas, também o é para outras. E as memórias geneticamente e circunstancialmente melhoradas são-no para o bom e para o mau. Há que bloquear a nossa especialidade, a nossa obsessão, e canalizar energias para a libertação do ego na direção do novo, do não familiar. Criar novas formas de lidar com a informação: ser receptivo, ser sempre receptivo, mesmo que nos pareça uma perfeita idiotice.

Nenhuma especialidade, obsessão, é saudável. Há que domá-las, torneá-las, dançar os ritmos indígenas com elas, fechar  e abrir os olhos as vezes que forem necessárias até que um ínfimo ponto de diversidade surja – e mordê-lo com tudo, com dentes, com unhas, com garras, com tudo. E partir do novo, daquela estrela; deslizar nos seus feixes à amplitude do ângulo, o mais giro. Repara que até o que interessa na vida – deslumbramento, estou a falar de deslumbramento –, torneia-se num ângulo giro: abres a boca de espanto! ( é um ângulo giro!) O sorriso assume-se raso face a isto, mas 180º sempre é melhor do que a rectidão de  90º ou a insuficiência de  menos de 90º, certo? O acutângulo de um beijo sabe sempre a pouco, por isso queremos sempre mais. ( E nunca estamos satisfeitos, não é? Ao ponto de preferirmos, por vezes, o nulo!)

Repara que até o que interessa na vida perfaz os 360º, abre-se num círculo de infinitude. Daí que todos busquemos o giro que é do abraço e caiamos na amplitude exacta da lágrima. E tu és mesmo giro! Sou tão emotiva!

Conceição Sousa

 


6* Por amor?

6*
Por amor?
Toda a minha vida escutei esta pergunta:
– O que serias capaz de fazer por amor?
(Tudo?)
Questionava “Tudo?”, mas será que?... 
Uma réstia de dúvida, nada de muito significante, nada de muito significante.
Há pensamentos difíceis, sensações extremadas que não devem nunca ser soltos. Intuem-se, sabem-se, guardam-se e reza-se para que nunca aconteça aquela circunstância, aquela intersecção do acaso que accione a necessidade: tudo?
Um filho.
Um filho que nasce de nós. Um filho que, sôfrego, abocanha o mamilo e sossega. Um filho que dobra o choro e sente os dedos a acalmar as cólicas: silêncio. Um filho que baba a urticária da dentição e rói o queixo até à exaustão. Um filho que enrola as letras na busca do colo. Um filho que cambaleia pela casa e balança o equilíbrio por entre os nossos braços.
Um filho.
Um filho que procura pela cadela que já não está. “É hoje que volta do veterinário, mamã?”
Um filho que olha para o ninho e olha p’ra mim: não fala, olha, indaga, percebe.
Um filho que diz que dói o braço e tu ouves “ vou morrer como a cadela, mamã?”
Um filho que procura pela avó que não está. “ É hoje que volta do hospital, mamã?”
Um filho que olha para o avental e olha p’ra mim: não fala, olha, indaga, percebe.
Um filho que diz que dói a barriga e tu ouves “vou morrer como a avó, mamã?”
Um filho a quem tu tocas e perguntas “ Doeu? Iupiiii! Parabéns! Estás vivo!”

Quando um filho precisa, a hora é sempre a certa.

 – O que serias capaz de fazer por amor?

Quando um filho precisa, a hora é sempre a certa.

Quando um filho precisa, a hora é sempre a certa.

Conceição Sousa

5* Aflige-a a correria

5*
Aflige-a a correria
Talvez porque já tenha corrido muito, e durante uma eternidade, e continue a correr, aflige-a, de sobremaneira, a correria –
e trava-a.
Sim, devagar, com mais calma… e intervalos, porque não?
 
Dantes era porque era urgente acabar com a fome, destituir a miséria, abraçar todos os que ama num xaile de amparo cómodo, restituir a força a quem se esvaziou de sonhos pelo vagar dela.
E foram, assim, duas extenuadas décadas a consumir-se até às vísceras, numa redoma fabril, onde nenhuma pausa se impunha ao ritmo acelerado das linhas de montagem, em que uma só funcionária, uma só, engolia toda a matéria-prima e expelia toda a produção; em que uma só funcionária, uma só, produzia tanto mas tanto mas tanto que distribuía à exportação. E exportava: exportava: exportava.
A miséria em redor desacelerou. A fome quase que se extinguiu. Os xailes multiplicaram-se. A força tornou-se contágio. A funcionária quebrou segundos antes de subir de posto. Disfarçou e subiu na queda.
Depois era porque era urgente acabar com as desigualdades. Havia que diminuir o impacto do afastamento de quem ficou para trás. E mais uma década na correria. A promoção era boa, mas, sem companhia, de que lhe valia? Tinha de produzir mais, descer à linha de montagem, ajudar quem lá estava a engolir toda a matéria-prima e a expelir toda a produção. E exportava: exportava: exportava.
Mais um subiu de posto, segundos antes de quebrar; contudo a quebra deu-se por um motivo diferente… não era a extenuação a razão da quebra, era o “tens-a-mania-de-que-és-melhor-do-que-toda-a-gente”, subiu e disfarçou, não a queda, a distância a derramar-se.
Ela continuou a subir na queda, e a fazer-de-conta. Um beco sem saída impõe um faz-de-conta, certo? E se é para continuar a queda mais vale que se suba, não? Se calhar não. Mas que faço? Paro e deixo-me cair?
Se ao menos a máquina desacelerasse.
Estás enganado. A máquina está parada. Quem não desacelera é a funcionária, raios! Não sabe desacelerar. Não consegue. Faz intervalos, cada vez mais longos, vá lá…
Descobriu que tem mesmo de fazer intervalos, longos, se quer companhia. Percebeu que não vale a pena correr. Correu tudo na partida, nos primeiros metros, agora está só. Precisa de aprender a não correr mais, mas o peito puxa, o rosto avança, o embalo não quebra, e o vento que não é vento empurra, o passo estica… que há-de fazer? Toda ela pede, toda ela pede, não tem como não lhe dar o que toda ela pede, e continua. Não sabe a distância do horizonte, parece-lhe mesmo que quanto mais corre, mais distante ele se projecta. Deixou de o observar, ao horizonte. Apenas contempla os intervalos, cada vez mais longos, dessa corrida que não acaba. E espera que um dia alguém se aproxime para intervalar com ela.
Sim, devagar, com muita mais calma, sim?
Se é p'ra cair, tenho tempo.

Conceição Sousa

quinta-feira, 22 de maio de 2014

4* Ímpeto de ruptura


4*
Ímpeto de ruptura
Não é invulgar o avanço para a queda em mim, um ímpeto inabalável de ruptura na direção do vácuo: e algo há-de acontecer, nem que seja um termo a prazo certo ditado por mim ( eu mando, a ditadura sou eu: fim).
Isto de quererem que eu exista para satisfazer as necessidades de outros e oprimir as minhas é uma treta. Era criança, impreparada, e já o reivindicava. Porque será? como se explica? Memórias de genes grisalhos, longínquos, vidas cumpridas até às rugas, calejadas de mágoa e resiliência, que permaneceram no óvulo da minha mãe e no espermatozoide do meu pai? Embora não haja notícia de na história familiar haver assim alguém tão insubmisso aos tempos, se calhar até houve, lá nas linhagens de mouros e nórdicos. Já vos disse que reconheço-me feições mescladas, testa de moura, nariz de romana e cores de viking? Ao rubro, sempre ao rubro, cabelos de fogo e olhos de lince – coração de fera abatida, a rosnar um “ Não te atrevas, longe! Olha que mordo e tenho fome!”
Rompi com o padre que massacrava a missa e eu tão pequena: Fala baixo, homem, que desperdício de energia, eu ouço bem! E porque só tu, homem, e não uma mulher? Anos a fio, corpo anestesiado, a percorrer os mesmos carreiros, a sentir a dureza daqueles bancos, joelhos doridos, mãos atrofiadas, uma na outra, a impedir a explosão de dentro no encalço da testa, o eco do sino a consumir-me os badalos do que é imposto, uma foto em que me vestem de bege, terço a carpir os nós dos dedos e eu, tão pequena, de maxilares cerrados, nem um sorriso. Será que não sentiram que não celebrava?
Rompi com a cultura da época, o pai que concentra em si todos os poderes, a subserviência do feminino ao masculino: “Não, meu pai, por que tem a minha mãe de estar de pé e te servir? Não foi ela que cozinhou? Por que não senta a minha mãe e serves tu a ela, não merece esse descanso, esse carinho? Por que não lhe abres tu a cama e lhe colocas os chinelos à porta do que a espera: ternura? E eu? Por que não saio eu à rua como os meus irmãos homens? Não te beijei quando entrei? Não te dei o mesmo abraço que eles deram?” Anos a fio a contornar a voz do instinto, a abraçar um toque oco, a beijar de cadeados, e venci. Rumei, esgotada e triste, ao futuro de um passado que não se recupera porque não existe. Vencemos. Já não há subserviência do feminino, há crescimento, aprendizagem, um pai divino e uma mãe aragem, evolução: e avental no coração de um homem bom.
Isto de quererem que eu exista para satisfazer as necessidades de outros e oprimir as minhas é uma treta, escutas bem, Sr. Ministro? Temo fazer uma loucura, temo fazer uma loucura. Um instante de decisão. Mais um ímpeto de ruptura. Um insignificante instante de decisão – e já nada será como antes, nem p’ra mim, nem p’ra ti, irmão. E, na verdade, já nada há que eu tema e esse é o gigantesco temor: nada há já que eu tema, escutas bem, Sr. Ministro? Um instante de decisão. Aviso-te. Um instante de decisão. E já não existo. Qual é a complicação? Sou moura, viking e romana, irmão…
A que vem será melhor. Respirará a liberdade de ter agido em tempo útil a decisão de lhe aprovar a vida: a de verdade. Uma loucura pelo bem da sanidade. Uma loucura e o champagne do teu sorriso. Uma loucura e o alívio da humanidade.
Quem vem comigo?
Sim, ninguém, de início, já sei...

Conceição Sousa

3* A morte da inocência é o fim.

3*
A morte da inocência é o fim.
A morte da inocência é o fim. E o rastilho. Tudo o que vem a seguir é prolongamento – porque é mais do mesmo, porque mói e mói e mói, porque nem anda nem desanda, porque morreu e apodrece a morrer e escarafuncha no não haver, porque consome o que já rompeu de gasto e continua a ralar –, tudo o que vem a seguir, permitam-me a redundância, é o inferno.
“Olá! Pensavas que nunca até mim virias? Olá! Um abracinho só, vá, não te encolhas, deixa de ser tolhida, só um toquezinho…”
A morte da inocência é a catástrofe. Quando o alumiar da vela se extingue, o que sobra? Rebordos calcinados, curvas ásperas e o bafo quente do teu hálito na penumbra que se reveza penumbra e mais penumbra, a sufocar.
“Chega p’ra lá, apre! Deixa-me respirar. Dá-me espaço, dá-me espaço.”
A perna que não se atreve a estirar, o terror do toque, um sinal e ele vem, abocanhar-me toda, engolir-me, não, não… Um ínfimo ponto, a apartar o asco.
Sonha o retorno da inocência, o dedilhar ingénuo, o sorriso ao acaso. Suspira a infância nos passos simples, o contemplar deslumbrado das horas que não se contam, do regresso aos segundos eternos, à magia dos pássaros que se constroem com conchas do mar.
“E voa? A sério? Voa mesmo? Como pôde um mudo construir umas asas de anjo num pássaro de iodo?”
É isso, viver. Passar o ciclo das auroras e dos crepúsculos em torno das asas de um pássaro de iodo, impossibilitado de falar; apagar os ruídos devassos do mundo no interior de cada concha que se cimenta; deslocar a retina no embalo do reclinar de testa e espantar-se junto com as penas que voam do pássaro.
“Vou, vou mesmo, aguarda-me… já me vês? Vês como voo? Não? Ah, sim, só as penas…”
Restaura o toque da inocência no silêncio que circunda a imponência do pássaro de iodo. Entrelaça os dedos enquanto sentes que a derradeira concha não deve ser posta, enquanto o mundo desconhece essa voz que nunca ouviu só porque não quer ser ouvida e não vale as penas do pássaro que a ouçam.
É isso, viver. Não vá o pássaro de iodo com asas de anjo e escultor mudo querer sair por aí a voar, não vá a inocência nunca mais querer voltar.
Ao inferno impede a demora um olhar húmido e mudo de iodo, uma derradeira concha pousada no coração de um anjo sem asas e a veleidade de um gesto que se trava –
para que o pássaro não se sinta completo e voe na direção do infinito.
“Quem tomaria conta de nós se a inocência partisse? Aquela pena há-de faltar sempre ali. A concha? Guardo-a no meu peito.”

Conceição Sousa

2* Pinceladas de divino

2*
Pinceladas de divino
– Ó filha, assim assustas-me! – aterra-me o meu pai, um agnóstico ateu com um altar de santos no canto mais canto do quarto, com velas acesas e tudo, a ver-se-me-sai-o-euro-milhões-só-por-isso-e-ainda-os-deito-todos-abaixo-porque-tá-visto-que-assim-é-que-não-sai…
Eu reparo que ele não repara no meu sorriso de esquina, malandro e a consentir, talvez porque se catapulte dos miolos à velocidade da alma (dizem que bosões de vezes superior à da luz, fracções de fracções de fracções milimétricas de segundos), e se perca de massa ali um nadinha antes do nervo do lábio: fica-se pelo trejeito mordido.
– Olha pela janela, mas olha com atenção, não vês? As lombadas da montanha verde musgo, como que braços a aconchegar-nos; o azul aguarela de ante crepúsculo, a ser pincelado com o azul arroxeado daquele algodão ali, e está bem-humorado porque tingiu para a esquerda e naquelas nuvens logo a seguir gargalhou um violácea para a direita. Não vês? Como é possível, no mesmo instante e num tão exíguo espaço, o vento deslocar-se em direções opostas? Não vês que é Ele a brincar, a esborratar-nos de divino? – clamei, com o sorriso esquivo, gasto de matéria, estancado na ponta da língua.
O meu pai petrifica, incrédulo, estátua, de mão ao alto, boca entreaberta, sem um pestanejar, e quase só a ver-se o branco do olho. Pressinto que sente o que verbalizo, mas resiste, não quer crer. Zangou-se com o divino lá muito atrás na transição de peles e resumiu a sua existência a quando-me-sair-o-euromilhões-eu-creio. Num esforço vão, tento explicar-lhe que Deus não é assim e que é por isso que nunca vai sair-lhe o euromilhões, dinheiro, estamos a falar de dinheiro. Continuo, quase sem fôlego, como que a dizer-lhe “olha para mim, caramba!, não sou eu prova suficiente de que Deus está contigo, homem?”
– Ai, filha, para. Ainda me causas um ataque cardíaco. Falas com tanta certeza que me assustas. Não fales assim lá fora, olha que o mundo é cruel e as pessoas vão apreciar-te como se aprecia uma coisa rara, invulgar. Vais sentir-te numa jaula, uma aberração de circo, a ser apontada , ‘tadinha da doida!, o mundo é assim, não compreende quem é diferente. Mas por que raios havias tu de ver essas coisas do divino em tudo o que é natureza, ó meu Deus?
E o sorriso lá se projecta, de novo, em catadupas de terminações nervosas bem cimentadas de magnésio, mas perde-se em fulgor ali pelas quebras de músculos faciais, e a partícula partícula, aquela de Higgs, não se consubstancia a tempo de elevar um cantinho tonificado de lábio. Contudo está lá, o sorriso, bem amplo, bem entregue, sem que o receptor o perceba. Uma alma sorri a outra alma e o corpo não chega para que ambas se vejam, para que ambas comuniquem, mas o sorriso existe. Se o sorriso existe e não é visto, pensa, por que não há-de Deus existir, sorrir, e não ser visto. Talvez o sorriso de Deus se fique, ali, pelo entremeado boreal das nuvens, naquela monção de pinceladas caóticas, e não consiga consubstanciar-se em bosão, matéria.
– Pai, só mais uma, por favor, vê bem, estica o olhar, aquelas outras nuvens alongadas ali, um kebab nupcial, várias camadas de branco reluzente… donde virá tanta luz já que o sol se foi? Sabes o que pode ser? Talvez um ovni, extraterrestres numa nave silenciosa híper-evoluida, a perscrutar-nos; ou o divino, quase a conseguir mostrar o caminho para o abraço infinito… o tanto que sei que está e não se vê.
Temo que lhe tenha tolhido as ideias, ou talvez não; se calhar sente-se agora mais acompanhado, mais pacificado. São tantos os apelos simples da natureza a todos os nossos sentidos: a brisa entrecortada de fim de tarde, aragem a eucalipto; os pirilampos num lusco-fusco; as vozes de outros seres, dos grilos, dos cães, um som de fundo quase que silêncio mas ruidoso ( o silêncio ante crepúsculo, fala demais, não se cala); as cócegas da ramagem que sopra a neve das alergias, só para nos tocar, nos provocar, e causar uma resposta:
–Aaaaaaaatchim!
Não sei o que falei, mas tu entendeste que sim, que te respondi e que te toquei. P’ra que precisas de saber mais? Se nos tocamos, se interagimos, seja lá de que maneira for, é porque existimos, é porque comunicamos, e se comunicamos é porque nos estamos a amar, mesmo que disso nada saibamos.
Beijo-te ( e não sei).

Conceição Sousa

1* O Abraço dos Cadáveres




1*
O Abraço dos Cadáveres
Hoje, mais uma vez, sem contar, num sítio público, chorei. Confortavelmente instalada à mesa de um café, com ar condicionado, a meio do meu banquete, um pedaço de cacete torrado com manteiga e um galão a escaldar, rotina de fim-de-semana, folheio as páginas de um jornal diário e eis que me deparo com a foto de um casal (choque, arrepio pela espinal medula), já cadáver, abraçado, debaixo de água (íris a afogarem-se junto), cabeça baixa, tremor, descontrole, revolta, ternura, ternura, ternura, impotência. Como pode alguém aceitar que milhares… que um só, que um só, morra em busca da vida? Como pode alguém, um só, um só, testemunhar um abraço p’ra lá da morte, um abraço prova de que nos somos um, um do mesmo, mais do mesmo, só o mesmo, e p’ra lá do que se não vê, e continuar indiferente ao naufrágio da existência? Eu não consigo, não consigo. Lampedusa deveria envergonhar-nos a todos. Não há-de faltar muito para que as águas do Mediterrâneo se tornem sangue: já o são, um sangue erguido a altar. Flores, muitas coroas de flores, vénias, muitas vénias, perdão, perdão, perdão, perdão, meus irmãos e minhas irmãs, perdão…
Há um holocausto a acontecer entre placas tectónicas, e o Homem decidiu que eram duas, e baptizou uma de Europa e a outra de África, e embora o Homem perceba que encaixam na perfeição porque já foram uma, Pangeia, impede, aniquila, assassina a vida daqueles que buscam a origem, que transitam, super-heróis e super-heroínas, com as suas famílias, na fuga desesperada da morte, e que encontram não mais do que a morte, na sua busca infindável pela vida. E o abraço desmistifica. O abraço consente a existência de uma verdade maior: o que importa é o caminho; o que importa é a pacificação da alma, a plena certeza de que tudo, mesmo tudo ao nosso alcance, foi tentado; o que importa é este calor, esta partilha derradeira aos olhos daqui, com que nos ofertamos à vida. O abraço que não desenlaça, o abraço que segura, o abraço que protege, o abraço que compreende, o abraço que confia, o abraço que não dói, o abraço que crê, o abraço que sorri essa verdade tão exasperante de tão simples: amo-nos; quero-nos; somo-nos.
O abraço dos cadáveres tão próximo do Papa. O abraço dos cadáveres, a voz de Deus, a linguagem de Deus, a prova de que é o Amor a transição, a prova de que a vida não termina nos corpos, a prova de que há muito mais p’ra lá do que se não toca, p’ra lá da matéria, p’ra lá do que se não ouve, do que se não cheira, do que se não vê; a mensagem tão óbvia, tão forte, tão evidente… o abraço dos cadáveres ali tão próximo da fé. É o abraço dos cadáveres a fé. Algo tão simples: sem catedrais, sem cerimónias, sem focos. E a prova da existência de vida para além da morte está ali, nas profundezas de Lampedusa, naquele abraço, naquele instante de transição em cujos corpos perduraram para lá do último sopro, a força sobrenatural, a partilha: o Amor.
E continuam a contar tostões, a descontar tostões, formiguinhas e cigarras em desvario a calcular dividendos, a massacrar lucros, a lambuzar off-shores. E Lampedusa ali, tão evidente, tão linda, na ternura daquele abraço. Quantos destes estrategas da estatística assassina, algures no tempo, irão sentir inveja deste abraço tão abraço?
Não sei quem são, os que se abraçam nas profundezas de Lampedusa, ali com a bota a pontapear-lhes o destino, Itália, carrasco ao serviço da Europa (Como conseguem? Não se imaginam lá? Naquele abraço das profundezas?). Gostaria de lhes conhecer o nome, não só o casal, mas todos os outros que buscam pela vida e sucumbem para esta vida naquele altar mediterrânico. Gostaria de saber o nome de cada um deles, dos meus heróis e das minhas heroínas, para lhes elevar velas e incenso, para lhes entregar orações e dedicar a minha gratidão eterna. É graças a pessoas que continuo viva (os outros, os decisores, não são pessoas) e que cada vez mais fortaleço a visão de que o melhor está para acontecer: e é p’ra lá do corpo, no embalo daquele abraço. Ninguém se pergunta por que se atiram os homens e as mulheres ao abismo em busca de consumarem o que, por nascimento, o é, a vida? Por que os fazem nascer e depois lhes ditam que têm de estar mortos? Por que será que o sinto, àquele abraço?
Deus não nos pede sacrifícios, Deus desfragmenta-se-nos escolhas e pede-nos bondade, ímpeto de retorno ao uno. E nós buscamos, mesmo que não nos peça, nós lançamo-nos nessa vontade inabalável de nos consumarmos Vida. E a morte deixa de o ser, recebemo-la com um abraço: será porque é a Vida que estamos a abraçar? E é isso: a bondade da partilha, a felicidade genuína na bondade da partilha, a entrega incondicional, este calor húmido de dádiva a que chamamos: Amor.
Deus, a Origem, o Ciclo, o Percurso Infindável, o Caos dos Fragmentos a gravitarem na realocação uns dos outros, a Verdade no Abraço dos Cadáveres: a Vida a receber-nos de braços abertos, por fim.
Só o Amor nos salva do não retorno. Só o Amor nos abre os braços. Só a Vida nos faz querer abraçar no limiar da morte.
Obrigada por estares aqui.
Conceição Sousa