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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Saí, de fininho

Saí, de fininho, como querias.
Da forma discreta que entrei,
na mesma forma discreta me ausentei,
mas não sem antes ouvir uns desaforos
(já o sabia),
não sem antes fazeres de mim uma louca coitada
(bem o previra),
não sem antes te defenderes do teu amor por mim
na cobardia de quem se esconde da vida ( a de verdade)
e teme com suores e calafrios a adrenalina do instante eterno
 ( o instinto avisara-me),
não sem antes respirares de alívio nas costas de quem te cede
(um sorriso calculado),
não sem antes te vangloriares aos sete ventos
da tua arte de sedutor
( não te preocupes, não conto a ninguém que és um pinga-amor),
não sem antes...
Saí, sim, de fininho ( já o sabia),
da mesma forma que entrei,
mas tu e eu sabemos
( embora p'ra ti mesmo o negues),
fiquei. Ai!, que medo!
Porque é que confundem sempre os mais lúcidos equilibristas com loucos?
O que não sabias, e digo-te agora, é que entrei e saí de fininho
por amor a ti, ao teu estar,
quis fazer-te ver o meu amar
e tornar-te assim uma pessoa melhor:
perdi-te p'ra mim,
mas ganhei-te p'ra ti.
E este é o meu ângulo. Sorri.

(Conceição Sousa)


*

Bem, mal

- E porque continuas a tratar bem quem insiste em te tratar mal?
- Trata-se de um equívoco. Quem insiste em me tratar mal, trata-se é a si próprio mal. A mim só chega aquilo que sou: o bem.
- Tretas! Não me digas que não te sentes magoado pelo que chega até ti? Às vezes vejo-te triste, cabisbaixo.
- Certo. Magoa sempre, mas só fica o que eu deixar ficar: o bem.
- Então não digas que a ti só chega o que és: o bem.
- Digo, sim. P'ra mim o bem é suficiente, dispenso tudo o que me faz mal ou causa mau-estar aos outros.
- Ah!, entendi. É por isso que tratas igualmente bem quem te trata mal.
- Não, não entendeste. É por isso que trato bem melhor quem me trata bem, e não trato nem deixo de tratar quem insiste em me tratar mal. Só quando a isso sou obrigado, e aí trato como sou: bem.

(Conceição Sousa)

Há coisas que não

Há coisas que não se dizem. Será?...
E há coisas que não se sentem?
E haverá coisas que não se pensam?
Então pensa, sente, e diz comigo:
p'ra que servem a boca, o raciocínio e o coração?
Isto do "há coisas que não..." é estúpido, não?

(Conceição Sousa)

Como posso dizer

Não te conheço.
Como posso dizer que é amor
este sentir que me estremece de rir?
Como posso dizer que é amor
este estar em ti, nesse corpo que não é meu,
que me roubou o pensamento
e me deixou vazia, aqui, no lugar onde sobra a matéria?
Como posso dizer que é amor
este pretexto de em ti ser
só para de mim não me perder?
Como posso dizer que é amor
a lágrima que se verte
de cada vez que o coração aquece
nessa utopia cúmplice?
Não te conheço,
mas sinto o abraço, bem apertado,
desse silêncio amargurado,
desse nó que na garganta fala,
e me traz ao colo para todo o lado.
És o ombro que se ajeitou,
nele me recostei,
e assim comigo ficou.
Não me perguntes - nem me perguntarias... -,
sabes que a ti me dei,
e dou,
nos segundos de aflição.
Quando a tristeza vem,
é sempre a tua na minha mão.
Não te conheço.
És o estranho que me sussurra
constantemente: perdão.
Ficamos, assim,
nos ombros um do outro,
a afagar-nos a vida: o sim.
Beijo-te.

(Conceição Sousa)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

colo

A tua doçura,
a tua fragilidade,
a tua rotina calada e subserviente,
a tua agilidade,
o teu sacrifício,
o teu suor,
as tuas lágrimas,
são a estrutura de aço que tudo sustém.
Quando, um dia, te disserem que és um fraco,
continua a não comentar.
Fraco é quem to diz -
e nada sabe da vida
a não ser gastar saliva e palavras ocas e vãs
na direcção do colo que à vida apraz.

(Conceição Sousa)

pia

Estou naqueles dias em que as forças me escapam,
em que o corpo é uma pia de onde alguém tirou o tampo -
e o elixir da vida depressa se esvai;
há como que um golpe profundo
para onde todo o sangue corre e se escorre de mim e de ti.
Os joelhos fraquejam,
o ar esqueceu-se de entrar e o mundo de me querer.
Devagar, caminho, e paro ,
olho as nuvens lá no alto por entre o azul: a terra a girar.

O tampo fechou-se ,
o sangue retornou
e eu voltei a respirar.

( Conceição Sousa)


*

domingo, 23 de dezembro de 2012

Mensagem de Natal

Sou um ser humano. E como qualquer um de nós, seres humanos, tenho a possibilidade de fazer as minhas escolhas ao segundo. Escolho ser feliz, escolho viver, escolho ser quem sou, escolho escrever, escolho partilhar, escolho os afectos, escolho as boas pessoas, escolho não temer, escolho abraçar-te, escolho beijar-te, escolho amar-te. Isto é o que escolho sentir que sou. Se o acreditas ou não, é problema teu: não meu. Tento viver em paz, faço por isso e, na maioria do meu tempo, vivo mesmo: em paz. Nos bocadinhos de mundo em que me deixo atormentar, sofro, mas logo passa, porque ( e fixa bem isto !) quem manda no meu tempo de sangue e carne e dor sou eu - e eu escolho ser boa para mim e para ti. Não te iludas, não é contigo que comunico, mas sim comigo. BOM NATAL, AMIGO!

(Conceição Sousa)

sábado, 22 de dezembro de 2012

nós, mulheres

De vez em quando, nós, mulheres, apreciamos entregar os nossos corações, bem vermelhinhos, bem esponjosos, bem carregadinhos de sangue, em cima de uma bandeja, e dá-los a saborear a eles, aos que nos cegaram os olhos ( sem que o soubéssemos, claro!), aos que nos sussurraram meias-verdades nos ouvidos habituados à surdez ( estou a ouvir? ui!, estou mesmo a ouvir? que bom, ouço! é que pensei que nunca mais pudesse ouvir!). De vez em quando, nós, mulheres, saímos dos nossos corpos e colocámo-nos, à distância de uma esquina, a observar o suor que escorre, a saliva do deleite que parece querer esticar-se até nós, até ao sorriso do canto que observa aquilo tudo, que anui ao gemido a leveza do eco e permite à pele a cinza do arrepio. De vez em quando, nós, mulheres, deitamo-nos no canapé lânguido do tempo só para adoçar o bico à inteligência e calcular o trajecto a que o outro se dispõe a ir. Mas pensas mesmo que ao orgasmo basta o toque do corpo? Estás plenamente convencido de que as águas e o grito te dizem que és bom? É que, à distância do canto de um sorriso, há uma inteligência de um calculismo calado que te sabe aprimorado na tua esquina, a dar ordens aos fluídos e hirtos do teu estar sólido, para que a tua matemática não te falhe e anote no papel todos os ângulos imaginados.

( Conceição Sousa )

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

fica com ela

Tu vens e dás-me uma má palavra,
o outro vem e, simplesmente, ignora-me,
a seguir vem mais um que esboça um sorriso amarelo,
e o que se esperava do próximo nem sequer aconteceu -
porque esse não veio.
E eu choro. Choro?
Não, não choro.
Bato o pé.
A tua má palavra é tua , não é minha: fica com ela.
A tua indiferença é tua, não me pertence: fica com ela.
O teu esboço amarelo é teu, não está em mim: fica com ela.
E quem não veio mesmo? Eu? Não, nem conheço: fica com ela.
Bato o pé. E esse, sim: é meu.
Anda cá,meu querido, que eu faço-te uma massagem...
o que é meu eu trato bem.

(Conceição Sousa)


*

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

estante

Queres cerrar comigo os lábios e,
num pacto de silêncio hirto,
serrar os troncos de civilização vestidos?
Basta-nos os cepos lânguidos -

e o comungar da seiva
no arrepio quente do inverno agreste.
Queres a surdez no grito da água

que sobrevoa a cascata imóvel -
e penetrar na gruta cheia de gente

que ninguém vê, ó estante?
Ou preferes o crepitar da lareira e,

junto comigo,
extinguir-te perante o suor escorrido dos amantes
que em nós se aquecem?

(Conceição Sousa)


*

domingo, 16 de dezembro de 2012

ausência natalícia

É triste que não possas estar entre nós, nesta mesa, a sorrir, a falar, a cantar, a berrar, a chorar.
É triste que não possas piscar o olho à mãe, enquanto ela perdoa à colher-de-pau o cansaço que lhe põe no braço ao mover os mexidos;
É triste que não lhe possas apalpar o leito condensado no vapor das rabanadas açucaradas com canela e vinho do Porto;
É triste que o teu prato não se afunde no verter do azeite de outrora, habituado ao salpicar da pimenta e das palavras com odor a alho que dizias pela boca fora - e sempre o vinagre te castigava a língua de cada vez que o tinto a soltava num abraço de conversa com sabor a demora;
É triste aquele lugar vazio na mesa, quando o coração dele se ocupa tanto - e saber, com toda a certeza, que amar-nos nunca te foi demais e que fizeste disso a tua vida em força de pranto.
É triste esta impotência... queria-te aqui, envolto no nosso calor, e não nesse frio, nessa solidão que te acolheu, o reverso da moeda p'ra quem nos deu e dá tanto amor.

(Conceição Sousa)

anjo com asas de zinco

Conta-se, por aí, que, em manhãs de grande invernia, com os doces ainda na mesa, e as migalhas espalhadas pelo chão da casa, um certo tipo de anjos, daqueles com auréolas boreais e asas de zinco, visitam os lares na madrugada do dia de Natal. Fazem-no às escondidas, à procura de alimento; não querem ser vistos nem pelos meninos e pelas meninas - que se levantam várias vezes, durante a noite, na esperança de vislumbrar a barba do Pai Natal - , nem pelo próprio distribuidor de presentes. Seria um constrangimento enorme alguém tão rico e poderoso ter de observar a fome com que estes anjos rastejam pelas carpetes no encalço do orvalho com sabor a mel. Conta-se, por aí, que é muito bom, na manhã de Natal, existirem vestígios das passadas destes anjos; significa que os espaços escolhidos, mesmo que sem comida farta na mesa, souberam acolher a penumbra em que caminhavam, souberam com o aroma a afecto abraçar a solidão dos seres de luz, souberam com o amor de uma mão sempre aberta aconchegar no quentinho da madeira que range a dor do anjo que guarda o homem perdido. E, todas as manhãs de Natal, se vires uma espécie de fio prateado de saliva a percorrer a carpete até à frincha gelada da porta, significa que um anjo destes entrou em tua casa, uma casa abençoada.

(Conceição Sousa)

sábado, 15 de dezembro de 2012

Um Poema de Natal

O menino lá estava,
num cantinho e a tremer,
mas a estrela que no alto brilhava,
fez descer a luz sobre a palha quebrada
e envolveu aquele que viria a ser Jesus
numa paixão ardente,
a de transmitir aos homens o amor nu
de quem tudo por todos sente,
de quem partilha a vida como se a do outro fosse,
de quem se aceita pecador, se perdoa, e aprende
a aceitar e a perdoar o erro daquele
que com ele vai conseguir caminhar.
O menino lá estava,
num cantinho a tremer,
e cada passo que dava,
Maria e José não continham,
também de medo tremiam,
mas confiavam no bem
que de seu menino sorria,
e sabiam que o burro, a ovelha,
e os três reis ( ignorância, servidão,
e poder)
também com ele,
no percurso da cruz,
dores e luz superariam.
Sábio e conhecedor de mundo é
quem criou esta belíssima história,
talvez o menino já velho
que quis deixar o brilho da estrela
a iluminar 2000 anos a Terra e os homens e mulheres
que ainda habitam nela.

(Conceição Sousa, um Poema de Natal)

mimosas

Todas as vezes que me perdi
foi com a inocência dos olhos de uma criança.
Fico sempre muito triste
quando percebo que aquele trilho desconhecido
e, aparentemente, belo que resolvi percorrer
vai afunilando, e afunilando, e afunilando...
até que, por fim, me obriga a regressar
aos estalos dos paus no solo côncavo e íngreme de um outro trilho,
mais familiar, onde descanso sempre
e mato a minha sede de colo da infância
na água que bebo pela profundidade da rocha.
O queixo e o peito agradecem a humidade gelada,
mas terna e calorosa, do odor a mimosas
que um dia nos recebeu numa viagem de carro sorridente
e inundou o lar num abraço amarelo gigantesco.
Por vezes, o amor transborda em excessos insuportáveis no instante,
mas que se mantêm na retina, na narina e no tacto para todo o sempre.
E este trilho, tão familiar, o do bebedouro,
o do trepidar das folhas secas e dos galhos,
o do tropeçar na poeira oca de ausência alternada de 10 cm de chão,
o do estio que ofusca a visão, o do perfume intragável das mimosas,
embala-me naquele sítio onde voltamos sempre: o doce lar.

(Conceição Sousa)


*

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Se choro
não é porque não me estendas a mão com um tostão;
é porque estou falido, sim,
estou doente, sim,
estou cansado, sim,
sou um desabrigado, sim,
mas está frio
e um simples abraço teu, meu amigo,
ia bem.

(Conceição Sousa)
Não sustenhas o que és,
um dia a morte há-de fazê-lo por ti:
não deixes que seja o amor a fazer-lhe a vez. /

Don't sustain what you are, one day death will do it for you: don't let love take its turn.

(Conceição Sousa)


*
E o menino cospe,

grita,

esbraceja,

arremessa o que vem à mão para qualquer lado,

numa fúria que não olha a quem,

nem ao quê,

nem ao quando,

nem aonde...

o menino mima o gesto do choro

(coloca as mãos em frente ao rosto, baixa a cabeça)

e diz,

numa linguagem que não reconhece ainda o som "rrrrrr":

- Vou cholále! nheeeee, nheeeee, nheeeee!

Não chora de verdade,

não se vêem lágrimas de verdade, mas...

chora mesmo,

e chora repetidas vezes,

e chora com intensidade -

com a intensidade de quem conhece bem as rotinas

(pois sabe que naquele shopping específico,

que visitou apenas uma vez,

ainda bebé,

a mesa dele não é aquela onde se sentaram,

mas aqueloutra,

a que está ocupada -

e não deveria estar),

chora com a intensidade de quem sabe que naquele dia,

todas as semanas,

àquela hora,

o pai deveria vir buscá-lo,

o pai deveria levá-lo com ele p'ra sua casa,

o pai, que muitas vezes falha e,

especialmente em dias de grandes jogos,

não vem.

(Conceição Sousa)
Os homens e as mulheres andam perdidos da sua
essência.
São imbecilidade permanente na distracção da sua
finitude.
E, dentro dela, vivem-se:
desperdício alarve de amar,
esbanjamento néscio de nada,
conflito ausente de ensanguentado ânimo,
pudor estulto do acessório combate.
Os homens e as mulheres vivem-se
como se não tivessem nascido, estado e sido.
Isto, que vejo em meu redor, é o rosto da morte –
e escarnece de nós:
o suposto abençoado com o graal do toque.
Sou volição de sentir: da dor, do amor.
E quero-te como alguém quis o meu pleno viver.
E venero-te como alguém venerou o meu despertar,
ao ensinar-me a sofrer.
E amo-te como alguém nos ama
nas linhas do nosso escrever,
ao mostrar-nos as escolhas que se respiram
e, docemente, nos atormentam o ser.
E amo-te, porque sei do agora e sei nos saber.
Só falta...amor...
Só falta...
E até a lágrima nos doaram,
para que pudéssemos crer.

(Conceição Sousa)
Por que me perguntas, mãe, o que tenho,
se não me apetece falar?

Olho para ti,
os teus olhos a quererem dizer que me amas,
e os meus a não conseguirem acreditar.

Se me amasses de verdade,
não terias discutido com o meu pai,
não terias lhe dito que gostas de outro,
não terias casado com ele,
e não estaria o meu irmão a caminho -
mas dessa parte até gosto, confesso;
não to digo.

Por que me perguntas, minha mãe,
o que tenho,
se sabes que não irei falar?
Falar o quê?
Aquilo que já estás farta de saber?

Já nada posso fazer para que tudo volte a ser como antes,
já nada te posso dizer que faça
com que tu e o meu pai voltem a amar-se.

Lembro-me, muitas vezes, de quando éramos felizes,
de quando sorríamos juntos,
de quando éramos uma família.

O Natal. O Natal é sempre o que custa mais.

Por que me perguntas, mamã, o que tenho,
se sabes que tudo o que te diga
não trará de volta o meu mundo, a minha vida?

Por que me perguntas, minha mãe,
se sabes que não queres ouvir o que tenho a dizer-te?

Por que me perguntas, mamã?

Sabe bem a pergunta, mãe.
Sabe bem saber que te tenho.

Sabe bem ouvir:

Não queres falar, pronto.
Dás-me, pelo menos, um abraço?

Mas ainda dói muito, mamã. E abraço-te.

(Conceição Sousa)
Desculpa, não percebi, meu amor,
Não percebi que eras tu.
Tu, sempre ali, a meu lado;
Tu, de braços abertos,
A conter-me no peito,
De olhos fechados,
A cobrir-me de beijos;
Tu, de sorriso rasgado
E pulso firme,
A dizeres-me o calor do teu sangue,
A escorreres-me o suor de quem me quer tanto:
Batimento cardíaco.
Desculpa, mas não percebi, meu amor,
Não percebi que eras tu, sempre tu, sempre ali.
Tu, a mão amiga, estendida, a chorar-me a dor
De me não teres;
Tu, o deserto de mim,
A trazeres-me café à cama,
A adoçares-me a língua de chocolate,
A mostrares-me o vídeo da minha expressão
Acabada de registar,
A passares as horas sozinho,
No quarto ao lado, apático,
A tocares no corpo sem gente dentro;
Tu, a perguntares:
- Onde estás? Sinto-te tão distante.
Desculpa, meu amor, mas não percebi
Que eras tu, sempre tu –
E eu a procurar tão longe
O que estava ali tão perto: o meu amor,
Batimento cardíaco.

(Conceição Sousa)
Desculpa, meu amor, mas não percebi
Que eras tu, sempre tu: o meu amor,
Batimento cardíaco.
Ainda hoje, ao fim de tanto tempo,
Ao fim de tantos anos,
Encosto o ouvido no teu peito,
Naquela paragem de autocarro,
Naquele sítio tão longínquo,
E ainda te digo, debaixo de uma chuva miudinha
E de um dia cinzento,
Que te quero amar para sempre.
Ainda hoje, encosto o ouvido e ouço a loucura em que nos meti:
Pum-pum, pum-pum,pum-pum-pum-pum-pum-pum-pum-pum…
E no meu rosto sinto a força desse músculo teimoso e descontrolado,
A cavalgar na direcção do agora, do aqui.
Estamos onde tínhamos de estar.
Tu não disseste nada, mas o teu coração confessou-se de imediato: sim.
Desculpa, meu amor, mas não percebi que eras tu, sempre tu:
A lágrima que se esconde e me guarda,
O meu amor,
Batimento cardíaco.
Houve um altar, sim;
Houve uma promessa, sim;
Há um amar,
Um só amar,
E uma bênção num roçar de antebraços,
Uma ternura em nos ficarmos, assim enlaçados:
Aliança.
Agora, sim;
Agora, compreendo:
Somos, juntos, o que construímos
Mais as quedas,
Mais o que continuamos, juntos a construir:
Aliança.
Encosta o teu ouvido aqui no meu peito.

(Conceição Sousa)
Desculpa, meu amor, mas não percebi;
Não percebi que a minha vida és tu, sempre tu,
Os lábios que tremem no meu deslizar húmido e salgado,
A voz que se cala, paciente, no caminho do meu regresso,
O lar que me acolhe sempre,
O coração puro e doce
Que me espera no dobrar da esquina,
Sempre lá, sempre aqui.
Desculpa, meu amor, mas não percebi;
Não percebi que foste sempre tu: o meu amor,
Batimento cardíaco.
Tu, a mimar o serão de mais logo,
A cortar os ingredientes em pedaços tão pequeninos,
Tão saborosos,
A perfumar o banho na barba grisalha de dois dias,
De mais de uma década,
A tocar-me na pele, a meio da noite, a meio da vida,
A afastar o frio de mim, a escuridão.
Tu, a pregar a partida na esperança de uma risada:
Vou, não vou?
Tu, a torturar as cócegas nas costas da gargalhada,
A soprar no umbigo o balão esborrachado:
Que lindos os meus bebés!
Tu, a olhar para mim, sempre para mim,
Um estar que ilumina, mesmo apagado.
Desculpa, meu amor, mas não percebi
Que eras tu, sempre tu: o meu amor,
Batimento cardíaco.

(Conceição Sousa)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

fonte


Encostas a tua fonte à minha fonte,

enrolas os meus cachos nos dedos meigos

que deslizam o arrepio da nuca que se entrega,

seguras a humidade do teu olhar negro no meu verde boreal -

e feres o lábio embriagado,

o que te bebe o verter do sussurro que queima no ouvido

e sucumbe ao nome que nos ferve.

Morde-me a ousadia,

lambe-me as cicatrizes,

grunhe-me o atrevimento,

geme-nos o acontece,

chora-nos as cãibras que te invadem na fuga,

grita-nos os beijos lentos a que o corpo se dá e pede -

sós rimos.

O amor não se diz nem se teme: consegue.

Vá: faz tudo o que te apetece:

é agora.

Quero ouvir.

Quem sou eu p'ra ti?

(Conceição Sousa)

Última dança

E a sua menina segurou-lhe na mão entorpecida...
Ali, bem firme, sentiu cada aperto esvaecido do fim,
cada sopro fundo de um pouco mais de cá,
cada esgar fugidio que não se quer de lá.
Escutou-lhe dos lábios inertes
o leve tremor da valsa de outrora,
o tempo de mais um sorriso que se demora,
a derradeira questão: cumpri?


 - Sim, meu pai. Dancemos.

E o ouvido levou o som da valsa ao aperto da mão
ainda uma última vez: a última para a sua menina.
 
(Conceição Sousa)
 

ainda posso

Escuto-te.
Ainda posso.
Não pares.
Ainda estou.
Sentir
é amar.
Sentir
é viver.
Doer
é viver.
Ainda posso.
Ainda estou.
Só mais uma vez.
Não te canses.
Só mais uma vez -
será a última ?

(Conceição Sousa)

Sítios

Em todos os sítios por onde passámos

ainda estamos,

vejo-nos lá,

com outros gestos,

com outras cores,
com outras palavras

e outros silêncios

e outros odores.

Olha-os, lá.

Amam-se.

Amam-se

como se não houvera amanhã -

e não há.

Olha-os, lá.

Beijam-se.

Beijam-se

como se a saliva secasse -

e seca.

Olha-os, lá.

Abraçam-se.

Abraçam-se

como se os braços caíssem -

e caem.

Olha-os, lá.

Caminham de mão dada,

como se as mãos murchassem -

e murcham;

como se o trilho ficasse por fazer -

e fica.

Olha-os, lá.

Encostam o rosto

como se a pele escolhesse -

e escolhe.

Olha-os, lá.

Aprendem a cor dos olhos

um do outro,

um sem o outro,

como se a vida cobrasse -

e cobra.

Olha-os, lá.

Sorriem os dias intermináveis

como se os dentes apodrecessem -

e apodrecem.

Olha-os, lá.

Confiam-se palavras e silêncios,

esgares, amuos, deslumbramento,

como se só a cumplicidade os compreendesse -

e compreende;

como se só o que são fora eterno -

e é.

Olha-os, lá.

Em todos os sítios por onde passámos

ainda estamos,

não vês, meu amor.

Só falta... cumpri-los:

aos sítios, ao tempo,

a eles

e a nós.

Fazes-me muita falta.

É. Amor.

E mais qualquer coisa que não sei definir.

(Conceição Sousa)

Amigo

Amigo é quem te aceita - 
vida a cumprir-se, asa que voa -
e te abraça naquela forma de te seres que o embaraça.
Amigo é quem te sabe incompreendida
e, apesar de sentir dor, te dá guarida.
Amigo é quem te conhece
e se apercebe observador do teu fluir,
sem querer mudar o rumo do teu rio,
nem uma barragem nele erigir.
O amigo sabe que, se te tentar verter num aquário,

deixa de o ser e molha-se no derramar da tua despedida.
Prefere, ainda assim, contigo sofrer
e aceitar o amor solto, leve, e verdadeiro que tens para lhe dar.
Prefere ao nada a ferida.

Conceição Sousa

faísca

Uma faísca.
O tempo de uma faísca, a vida.
Quem nunca sentiu que ainda ontem era uma criança descalça
a correr na poeira de um dia tórrido de Verão
e hoje a secura da pele entranha-se na rugosidade do Inverno?
Uma faísca.
Vale a pena um mau íntimo? Ora pensa lá bem.
O tempo de uma faísca, a vida.
Agarra-a no amor que sentes dentro de ti.
O resto? Ignora.

(Conceição Sousa)

insufladas

As pessoas insufladas de certezas não são agradáveis. Nem tenho sequer paciência para argumentar com elas. Chama-se a isso imaturidade. Nesses instantes, essas pessoas dispensam-se. Acredita, é o melhor.
Esse tipo de postura não traz qualquer benefício a isto que é a vida, a não ser o de perceberem, elas próprias ( perante o silêncio de quem não tem pachorra), o que não haviam percebido até aí: o
que é hoje já não é amanhã, e cada caso é um caso. Tão básico que até enerva.
Há um saber de experiência feito que é preciso ( e é inteligente) respeitar - e não é necessário estudar psicologia para compreender isto ( embora também eu a tenha estudado e até admita que ajuda - já o contrário não funciona: a psicologia sem a experiência). Compreendeste? Nem por isso, não é? Falta-te a idade e a experiência. Agora vai lá ser pai ou mãe primeiro. Um conselho de amiga: deixa cair os dentes de leite, depois falamos, ok? Vá: beijinho.

(Conceição Sousa)

gostar de sofrer ?

Não é que goste de sofrer,
não se trata disso:
ninguém gosta de sofrer.
É algo mais fundo,
é uma forma de ser,
é um acreditar das entranhas:
amar incondicionalmente -
mesmo que, circunstancialmente, seja um amor ferido,
mesmo que, circunstancialmente, seja um amor rasgado,
mesmo que seja um amor de um só lado -,
amar incondicionalmente é a minha escolha,
é o meu presente para quem me saiu do ventre,
é o meu legado.
É um amor sofrido, sim -
mas não tem ( nem deve) de ser calado.
A tua mãe é o bem.
Lembra-te de quem ela é, age, e sorri.

(Conceição Sousa)

ódio / hate

Ela sabe que não vale a pena aprender o teu ódio,
nem sequer o dela.
Ela sabe que não vale a pena aprender a tua revolta,
muito menos a dela.
Ela sabe que a vida é aquilo,
mesmo que a diga de outra forma.
Ela sabe o que quer:
o teu amor.
Ela sabe que o tem.
Ela sabe a que sabe o teu beijo: a sal : lágrimas e suor, amor.

She knows that your hate is not worthy to learn, not even hers.
She knows that your anger is not worthy to learn, and hers even less.
She knows life is that,
even if she tries telling it otherwise.
She knows what she wants:
your love.
She knows she has it.
She knows the taste of your kiss: salt: tears and sweat, my love.

(Conceição Sousa)

mágoa

Há ainda mágoa, sim...muita mágoa.
Quero-te bem, sabes que sim;
quero-te infinitamente bem.
Simplesmente não consigo estar a dois passos de ti.
Não consigo estar -
significa que te perdi, não?

(Conceição Sousa)

ausência

Só tens de pensar assim:
Se, de repente, ela/ele deixasse de estar entre nós, que sentimento te despertaria?
Saudade?
Alívio?
Indiferença?
Ora, aí tens a tua resposta.
Agora, actua em conformidade.
Não queiras nem
o Remorso,
nem a Vingança,
nem a do outro Vontade.

(Conceição Sousa)

prateleira

Há várias prateleiras: tu estás aqui, tu estás ali e tu estás acolá. Tudo muito certo e tudo muito arrumadinho, um mais acima, outro mais ao centro, outro mais abaixo - e desde que assim seja não há problema rigorosamente nenhum; por isso pedi que as fizessem em madeira maciça, assim não há o perigo de quebrarem.

(Conceição Sousa)

confiança

Sem dúvida que a base de qualquer relacionamento saudável é a confiança. Não deves temer dizer ou ouvir um não, não deves colocar de parte quem, amavelmente, te diz aquilo que não queres ouvir, nem tampouco balançar quando te é difícil dizer uma verdade. Se é o que sentes, se é o que pensas, se tem de ser dito: diz. Mesmo que não agrade, mesmo que cause tristeza, mesmo que a verdade do que sentes ou pensas te leve a cometer um acto que vai magoar o outro, não te detenhas: age. O outro saberá sempre que tem, em ti, um relacionamento sólido. E essa base de confiança é inesgotável - e é a maior prova do teu respeito, da tua amizade.

(Conceição Sousa)

sem ti, não sobreviveria

Eu tinha frio, amor. Entrei na cama, gelada. E tu estavas lá. Fervias. Devagarinho, coloquei as costas do meu pé no teu pé.Devagarinho, para que não sentisses o choque térmico, mas tu logo me embrulhaste entre o calor dos teus braços e das tuas pernas. Escaldavas - e eu tão gelada. Doeu-me a tortura a que te submetias, pois sei que o contrário não aconteceria. Não te amo, confesso. Sem ti, não sobreviveria. Estava gelada, pois; e tu ofereceste-me, naquele instante, a melhor parte de ti, enquanto a trocava pela pior parte de mim. Não te importaste, e até o quiseste, desde que me sintas gelada e, lentamente, a deixar de tremer, respiras o meu precisar-te - disseste - e isso sabe-te a viver. Não te amo, confesso. Sem ti, não sobreviveria. É tanta a dádiva que me concedes, sem que eu o retribua, que, agora, assim à distância de uns anos, te digo: Não te amo, confesso. Sem ti, não sobreviveria. És um carinho ameno que foi, devagar, entrando e, sem que me apercebesse, lentamente me ocupando. Não te amo, confesso. Sem ti, não sobreviveria.
As minhas entranhas não suportariam ver sofrer quem depositou nelas o meu ser.
Não te amo, confesso, tal como não amo a minha pele, os meus ossos, o meu sangue, o meu respirar, porque nem sempre os vejo, nem sempre me lembro deles, nem sempre os penso, mas a verdade é que sem eles seria impossível estar.
O que quero dizer-te é: vivo e sou quem sou porque o amor maior está no que está sempre e por estar sempre olvida-se.
És da minha natureza, amor.

(Conceição Sousa)
 

É o que é.

Sabes que o que nasce de lá, do fundo, amanhece num calor sempre bom;
o que escorre de lá, das nebulosas entranhas, nunca se impede de acontecer;
o que liberta a fragrância de um sorriso de infância doce, aparece em redor do corpo que cai;
o que timbra no âmago de um afecto diferente, é contínuo florir e dói;
o que cresce no sangue quente de uma pena constante, massacra mas fica, amor, num amar de...
vozes que entoa um inóspito estar.
E o que é de lá, do sentir que é nosso, é sempre legítimo porque é o que é - nunca o tacto do nos sermos toca o ilícito.
É sempre com muito amor, o meu querer... e disso não podes fugir.
É o que é .

(Conceição Sousa)

tenho de sentir

Tenho de sentir que,
à nossa maneira, posso confiar em ti:
que me escutas,
que me sabes,
que me falas,
que me amas.
Só assim seremos.
Só assim existimos.
Só assim seremos: sentir
que me escutas,
que me sabes,
que me falas,
que me amas.
Não quero ser recordação.
A ser recordação prefiro nem recordação ser.
É que estou viva, sabes?
E sou assim ... como tu sentes:
alguém que te escuta,
que te sabe,
que te fala,
e que te ama,
todos os dias -
mesmo quando parece não estar.
 
(Conceição Sousa)

o milagre da vida

Estou plenamente convencida de que todo o ser humano conhece, lá, onde a faísca se dá, onde a temperatura aperfeiçoa o instante da criação, o amor. Contudo, assim que o líquido a escaldar se verte pelas pernas abaixo, inicia-se o enregelamento, vai se perdendo o amor, até ao sopro final que acolhe a dureza da vida. Mas um ventre capaz de envolver um ser e acolhê-lo em águas em ebulição, um âmago que se contrai e surpreende a mente na força com que expele a vida, prestes a iniciar-se, também me faz crer em algo surreal a acontecer, lá, mesmo no fim. E sei que nada do que possa pensar me trará respostas. Mas há algo que sei. Confio.A fervura que me escaldava a pele, e que jorrava de dentro de mim,não era minha, não era eu - pois se me queimava... Aquele ímpeto violento, aquele impulso de expulsão não era meu, não era eu - pois se quase rebentava...aquele ser na minha mão, saiu de dentro de mim,é certo, mas ainda o estava a conhecer. Todo aquele milagre, toda aquela bênção me leva a crer que existes, e prova maior, na minha vida, meu Deus, não poderia ter: amor. Não era eu, senti. Não era eu, mas delegaste em mim o poder de , na vida, amar quem me fizeste parir.

(Conceição Sousa)
 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

loba/ wolf

O que mais dói é não saberes de mim, como eu sei de ti. Invadem-me pensamentos a maresia pelo canto da boca - escorrem de uns olhos de loba. /

What hurts the most is you not knowing of me as I know of you. Some vaguely seashore thoughts invade me through the corner of my mouth - they slide from the eyes of a female wolf.

(Conceição Sousa)

Quem procura quem?

Tenho de sentir que és tu quem procura por mim. Só assim poderei chamar à realidade um sonho. /

I need to feel that it's you looking for me. Only then could I call reality a dream.

(Conceição Sousa)

Sucesso

Entende isto:
só se tratares o teu semelhante com respeito
serás respeitado.
O sucesso não significa que tenhas o afecto dos que enganas,
tens apenas o afecto dos que não se sabem enganados.
A tua vida é, pois, uma mentira.
E é esse o teu maior sucesso.
Sorri.

(Conceição Sousa)

Lembras-te de?

Sinto-me muito próxima daquele ponto.
Fechar esta cortina
e começar lá atrás - bem lá atrás.
Sem sequer ser lembrada.
"Lembras-te de...?"
Não. P'ra mim não.
P'ra mim esse discurso não serve,
porque tudo o que fui deixou de ser
no exacto momento em que passou a ser: fui.
"Lembras-te de...?"

Não. P'ra mim não.
Essa de quem te lembras
nunca existiu.
Fui.

(Conceição Sousa)

poucas palavras

É um homem de poucas palavras, mas está sempre onde preciso que esteja - e isso deve significar alguma coisa, não? Amo-te. /

He is a man of a few words, however he's always where I need him to be - and that must mean a lot, don't you think? Love you.

(Conceição Sousa)

o que é

A maior dor é a que não se consegue dizer.
Ninguém consegue fugir ao que é.
E ela, por muito que não quisesse,
sabia-o ali: ainda estava.
Era uma dor que a fazia sorrir.
Aceitava quem, ou aquilo, que era:
a sua vida.
( E com todas as imperfeições.)

(Conceição Sousa)

nova vida

Se Deus te desse uma nova vida
e soubesses, de antemão,
que em dado ponto me irias conhecer,
passarias pela que tens,
sem pestanejar,
para que mais tarde me pudesses agarrar?

(Conceição Sousa)

pura vaidade?

Hão-de pensar que é pura vaidade.
Não é não.
É mesmo necessidade: comungar.
E um doce aroma a paz circunda a nossa aura.
Inspiro e travo aí uns largos segundos.
É quando, devagar, expiro que o sorriso vem.
Todas as mortes, mais tarde ou mais cedo,
trazem o sorriso do tempo que se cumpriu.
O sorriso húmido da saudade dos vivos.

(Conceição Sousa)

Última dança

Última dança

E a sua menina segurou-lhe na mão entorpecida...
Ali, bem firme, sentiu cada aperto esvaecido do fim,
cada sopro fundo de um pouco mais de cá,
cada esgar fugidio que não se quer de lá.
Escutou-lhe dos lábios inertes
o leve tremor da valsa de outrora,
o tempo de mais um sorriso que se demora,
a derradeira questão: cumpri?



- Sim, meu pai. Dancemos.

E o ouvido levou o som da valsa ao aperto da mão
ainda uma última vez: a última para a sua menina.

(Conceição Sousa)

canso-me

Às vezes canso-me, amor. É só isso. Às vezes, canso-me. /

Sometimes I get tired, my love. And that's it. Sometimes I get tired.

(Conceição Sousa)

vazio / emptiness

Criaste-me um enorme vazio. Agora, ao menos, deixa-me viver e desaparece no oco. / You've created me an enormous emptiness. Now, at least, let me live and fade away in the hole.

(Conceição Sousa)

?

Eu não existo para que gostes de mim, eu existo para que goste de ti. /

I'm not here for you to like me, I'm here for me to like you.

(Conceição Sousa)

Fragile

É pelos olhos dos mais frágeis que Deus observa o mundo. /

It's through the eyes of those who are more fragile that God observes the world.

(Conceição Sousa)

mouth/boca

Se não se entrega na boca, na língua - desculpa dizer-te -, essa mulher não é, nem nunca será, tua. /

If she doesn't give herself in the mouth, in the tongue - I'm sorry to tell you -, that woman isn't, and will never be, yours.

(Conceição Sousa)

mel/honey

Dá-me doçura em palavras e saboreia o mel a escorrer de mim. /

Give me sweetness in words and taste the honey sliding from me.

(Conceição Sousa)

Eu disse-te

E eu disse-te " Experimenta uma identidade nova, apaga todas as hipóteses de raciocínio remexidas e rebatidas até aí, esvazia-te do que eras antes de me conhecer, não resistas, não te impeças de o tentar, faz 'delete' em todas as frases inventadas e legisladas por ti; deixa-me entrar, vá: é só um pequeno gesto, não custa nada, eu ajudo-te, um pequeno gesto, devagarinho, mexe-te nesta direcção, muito devagarinho, vá...está quase. Experimenta uma nova identidade, vais surpreender-te: garanto-te. Deixa cair esse dedo e mostra-me quem és mas ainda resistes a ser, deixa cair o que há muito deixou de ser."

(Conceição Sousa)

novelo

Sei lá!
São tantos os acasos e os novelos que se enrolam,
desenrolam, enrodilham,
e desencilham
(dia após dia, hora após hora, mês após mês),
desde que nascemos até que por fim nos vamos...
como é que podemos dizer que seríamos determinada pessoa
se basta uma destas linhas se cruzar
mais acima ou mais abaixo,
mais atrás ou mais à frente,
mais ao lado ou mais no centro,
ou até nunca se cruzar,
para percebermos que o deixámos de ser:
quem éramos.
E quem éramos?
Quem seríamos mesmo?

(Conceição Sousa)

iceberg

Lamento dizer-te, mas faz hoje um ano que esfriou.
Esfriou um gelo tão enregelado que,
nem que desça dos infinitos céus uma nave espacial
tipo bola de fogo toda a arder
(o Sol na Terra pois, e bem na minha frente),
nem que o lume se acerque da minha pele
já queimada de glaciar,
não há forma do inverno se liquefazer.
Arrumou com a primavera
e veio mesmo empedernir aquela singular fagulha. ...
Extinguiu-se.
É iceberg à deriva, apenas a aguardar os sucessivos navios
que sabe: fará naufragar.

(Conceição Sousa)

domingo, 9 de dezembro de 2012

disseste-me

Naquele dia disseste-me que, infelizmente, já estavas ocupado. Recebeste o meu beijo de fogo como uma surpresa triste. O teu olhar apressado de mundo parou em mim por um breve, incrédulo, e sorridente instante. Quiseste ficar ali, naquele escuro tranquilo e doce, por toda a eternidade. Senti-o, no teu coração cabisbaixo. Ponderaste uma nova vida: o início, ali mesmo, no interior daquele carro tão terno. Ficaste. E ela levou-te, num pé pesado, para o íntimo que um dia também quiseste iniciar e que, agora, te guardava de mim, te impedia do meu estar.
Naquele dia disseste-me, com a tua melancolia resignada no que construíste até ali, que aquele ali é que era verdade, aquele ali é para sempre: o nosso sono. Aquele beijo ainda não terminou."
(Conceição Sousa)

ódio

Ela sabe que não vale a pena aprender o teu ódio,
nem sequer o dela.
Ela sabe que não vale a pena aprender a tua revolta,
muito menos a dela.
Ela sabe que a vida é aquilo,
mesmo que a diga de outra forma.
Ela sabe o que quer:
o teu amor.
Ela sabe que o tem.
Ela sabe a que sabe o teu beijo: a sal : lágrimas e suor, amor.
 
(Conceição Sousa)
 

Gaveta

Há algo que sei, desde muito novinha:
se isso me doeu a mim, vai doer-te a ti.
Coloquei a mão na gaveta e fechei-a.
Au!, doeu.
Não vou querer que tu coloques a mão na gaveta e a feches.
Mesmo que não consiga falar,
pelo menos empurro-te para o lado.
Vais cair, vai doer-te na mesma,
mas eu ainda não sabia que ao empurrar-te caías.
E que te doía.
Agora já sei.

(Conceição Sousa)
 

Lembras-te de?

Sinto-me muito próxima daquele ponto.
Fechar esta cortina
e começar lá atrás - bem lá atrás.
Sem sequer ser lembrada.
"Lembras-te de...?"
Não. P'ra mim não.
P'ra mim esse discurso não serve,
porque tudo o que fui deixou de ser
no exacto momento em que passou a ser: fui.
"Lembras-te de...?"
Não. P'ra mim não.
Essa de quem te lembras
nunca existiu.
Fui.

(Conceição Sousa)

iceberg

Lamento dizer-te, mas faz hoje um ano que esfriou.
Esfriou um gelo tão enregelado que,
nem que desça dos infinitos céus uma nave espacial
tipo bola de fogo toda a arder
(o Sol na Terra pois, e bem na minha frente),
nem que o lume se acerque da minha pele
já queimada de glaciar,
não há forma do inverno se liquefazer.
Arrumou com a primavera
e veio mesmo empedernir aquela singular fagulha. ...

Extinguiu-se.
É iceberg à deriva, apenas a aguardar os sucessivos navios
que sabe: fará naufragar.

(Conceição Sousa)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

cavaleiro da Dinamarca

Nós tivemos esta conversa bem lá atrás, lembras-te?
Ao dar o nó, dissemos um ao outro que uma vivência a 10, 20, 30, 40, 50, 60 anos ( ou o que seja) seria abalroada por vazios, ausência de sabores e cheiros, instantes anestesiados de nós, mais do mesmo sempre, silêncios distantes, lembras-te?
Dissemos que, naturalmente, algumas manobras de diversão nos distraíriam: ilusões - ou o que lhe queiras chamar -, lembras-te?
Pois bem, desta vez foi a minha vez, mas voltei.
Assim como tu já voltaste algumas vezes, lembras-te?
Penso que o importante é sabermos, nesses raros momentos em que nos soltamos um do outro, que nos estamos a perder um ao outro;
penso que o importante é o outro ficar alerta - sempre alerta ( é o que tem acontecido, não?) - e manter-se firme na decisão de não desistir, de não deixar de amar, de até saber que é nesse instante - o da perda iminente - que a paixão regressa com a força de um vulcão em erupção;
penso que o importante é o amor: a certeza desta ternura que nos abre os braços na hora de regressar a casa.
És tu o meu doce lar.
Viaja, conhece, meu cavaleiro,
mas volta lá da Dinamarca para me continuares a amar.

 (Conceição Sousa)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

conto infanto-juvenil

"O Mago Agosto sorria perante o espanto timbrado no rosto das crianças que ainda não haviam fechado a boca nem soltado o brilho dos olhos na direção do fundo. É certo que neste local tão húmido, seria impossível o Chamusca trabalhar. Qualquer pequena sujidade era imediatamente eliminada pelo vapor de água, pelo orvalho. Os meninos tinham os cabelos mais brilhantes, quase como se tivessem saído do banho. Mas um banho especial, com produtos que dão lustro às pessoas. Tilintavam como os diamantes. Seriam estrelas também? Sentiam-se leves, muito leves, a flutuar."

("Em Busca da Flor de Mil Cores", conto infanto-juvenil de Conceição Sousa)

pastel

Minha fragrância limão-canela,
meu arrepio mel-vinagre,
meu embargo café-moscatel,
já sabes que te quero
como quem se banha de chocolate
e verte no marinar da pele.
Só hoje, saboreia-me no amor em que te despeço,
ao convidar-te para velares o jantar do nosso fel.
Ama-me, pastel!

(Conceição Sousa)

Amar/ love

Se não for para te amar
de que adianta ter nascido,
viver,
e ter morrido? /

If it isn't to love you
what's the point
in having been born,
in living,
and in having been dead?

(Conceição Sousa)

Copinho de leite

- Copinho de leite! Copinho de leite! Copinho de leite! - tapava os ouvidos perante os gritos histéricos de crianças que nem sequer conhecia. Eram de outras turmas mas sabiam-na uma excelente aluna. Não suportava escutar o prémio diário do seu esforço. Tomou uma decisão, aliás uma que a acompanha ainda hoje. "Amanhã. Amanhã vou concretizá-la."

8.30h, na sua frente um papel branco com expressões numéricas, "ora, aqui é a propriedade distributiva da multiplicação, mas...amanhã não quero que me chamem copinho de leite, não quero ser a melhor, quero simplesmente ser normal... 5x (6+4)= 5x6+ 5x4. Stop! Não queres acertar, pois não? Ok. 5x6+4."

- Oh!, a copinho de leite tirou negativa!

- Bem-feito! Estás a ver? Afinal não és nada de especial, ó tótó!

"Sim, não sou nada de especial. E ser igual aos outros também não me traz mais felicidade. Deixei de ser copinho de leite e passei a ser tótó. De vez em quando sabe bem ser tótó...mas p'ra dizer a verdade, mal por mal, preferia chegar a casa com o excelente na mão. Agora vou ser uma tótó de castigo." - pensou para com os seus botões descasados.

(Conceição Sousa)

Lamento

Se não te dá uma palavra,
se não te envia um email,
se não o ouves no telemóvel,
se não te contacta de forma alguma: não existes.
Na vida dessa pessoa, não existes.
Não merece que dediques 5 segundos da tua vida, do teu pensamento, nessa direcção.
Acorda, querida. E avança.
Não te desperdices no que não te sente.
É...É mesmo isto. Lamento.

(Conceição Sousa)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

devagarinho

Vá, força, devagarinho, levanta dessa cadeira, entra na casa-de-banho (estás a fazer o que te digo?), põe a água a correr ( está quentinha? Ok.), não te olhes ao espelho - ainda...-, sente o calor na pele, massaja bem todos os bocadinhos de ti ( a parte de dentro do peito também), deixa as lágrimas correr com a água, inspira, expira, inspira, expira, pega na toalha, enxuga-te, devagarinho, afaga-te, devagarinho, coloca uma roupa especial ( quentinha), seca o cabelo, de cabeça para baixo, vá, calça-te, as meias, os sapatos. O espelho, agora podes olhar, sorri, isso. Agora sai e vai ver pessoas, vai tocar na luz do amanhecer, vai respirar o odor a eucalipto, vai sentir o sol no rosto, vai viver. Força.
Mais logo contas-me como foi o teu dia, sim?
Beijinhos.

(Conceição Sousa)

maneira


Tenho de sentir que,
à nossa maneira, posso confiar em ti:
que me escutas,
que me sabes,
que me falas,
que me amas.
Só assim seremos.
Só assim existimos.
Só assim seremos: sentir
que me escutas,
que me sabes,
que me falas,
que me amas.
Não quero ser recordação.
A ser recordação prefiro nem recordação ser.
É que estou viva, sabes?
E sou assim ... como tu sentes:
alguém que te escuta,
que te sabe,
que te fala,
e que te ama,
todos os dias -
mesmo quando parece não estar.

( Conceição Sousa)

fonte


Encostas a tua fonte à minha fonte,

enrolas os meus cachos nos dedos meigos

que deslizam o arrepio da nuca que se entrega,

seguras a humidade do teu olhar negro no meu verde boreal -

e feres o lábio embriagado,


o que te bebe o verter do sussurro que queima no ouvido

e sucumbe ao nome que nos ferve.

Morde-me a ousadia,

lambe-me as cicatrizes,

grunhe-me o atrevimento,

geme-nos o acontece,

chora-nos as cãibras que te invadem na fuga,

grita-nos os beijos lentos a que o corpo se dá e pede -

sós rimos.

O amor não se diz nem se teme: consegue.

Vá: faz tudo o que te apetece:

é agora.

Quero ouvir.

Quem sou eu p'ra ti?

(Conceição Sousa)

posso?

Escuto-te.
Ainda posso.
Não pares.
Ainda estou.
Sentir
é amar.
Sentir
é viver.
Doer

é viver.
Ainda posso.
Ainda estou.
Só mais uma vez.
Não te canses.
Só mais uma vez -
será a última ?

(Conceição Sousa)

amigo

Amigo é quem te aceita - vida a cumprir-se, asa que voa -
e te abraça naquela forma de te seres que o embaraça.
Amigo é quem te sabe incompreendida e, apesar de sentir dor, te dá guarida.
Amigo é quem te conhece e se apercebe observador do teu fluir,
sem querer mudar o rumo do teu rio, nem uma barragem nele erigir.
O amigo sabe que, se te tentar verter num aquário, deixa de o ser

e molha-se no derramar da tua despedida.
Prefere, ainda assim, contigo sofrer
e aceitar o amor solto, leve, e verdadeiro que tens para lhe dar.
Prefere ao nada a ferida.

Conceição Sousa

choro/ cry

Se choro
não é porque não me estendas a mão com um tostão;
é porque estou falido, sim,
estou doente, sim,
estou cansado, sim,
sou um desabrigado, sim,
mas está frio
e um simples abraço teu, meu amigo,
ia bem.
 

If I'm crying
it's not because you don't give me a penny;
it's because I'm broken, yes,
I'm sick, alright,
I'm tired indeed,
I'm a homeless, that's a fact,
but it's cold
and if you could simply hug me, my friend,
that would be nice.

(Conceição Sousa)

loba/ wolf

O que mais dói é não saberes de mim, como eu sei de ti. Invadem-me pensamentos a maresia pelo canto da boca - escorrem de uns olhos de loba. /

What hurts the most is you not knowing of me as I know of you. Some vaguely seashore thoughts invade me through the corner of my mouth - they slide from the eyes of a female wolf.

(Conceição Sousa)

Número

Há pessoas que se entregam à caça de números,
não àqueles sugados e descartados
(esses nem sequer saldo negativo são,
representam um elemento que passou a ser nulo),
mas sim aos ainda por ocupar,
aos ainda por sugar,
aos ainda por descartar e anular.
E, enquanto houver números, elas lá continuam a fazer o seu número:
uns zeros à esquerda é o que são.
Coitadinhos.
Será que não se percebem um número a tratar pessoas como números?
Será que não percebem que vivem do nada e para o nada?
Pessoas são pessoas: uma, sem vezes pelo meio, de pessoas.
E é isso que estou a tentar ser:
uma, sem vezes pelo meio, de pessoas a dar afecto e a recebê-lo.
A maior das carências é a maior das vivências: o afecto.
Abraço-vos, ainda que virtualmente.

(Conceição Sousa)