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Só o giro interessa
Sei que, logo
ali, na despedida da infância, à porta da adolescência, fiquei condicionada,
fui condicionada. Sou curiosa de saber
como teria sido se, normalmente, como outra criança qualquer, em qualquer parte
tranquila do mundo, tivesse podido continuar a caminhar sem grandes
sobressaltos nem parvas euforias ou medonhas agonias. Sim, como outra criança
borbulhenta qualquer, como teria sido?... Intuo que nada do que me tornei hoje existiria.
Não consigo
evitar de sentir todas as dores advindas como um prémio. Sim, um prémio em direcção à
optimização da inteligência emocional. Só para que entendam melhor, Malala
Yousafzai, a menina a quem deram um tiro por defender a escolarização das
meninas e teimar em ir à escola, ganhou um prémio muito antes de o ter ganho de
facto, dores especiais que a brindaram com uma inteligência emocional extrassensorial
– nem dá sequer para imaginar o estádio evolucional em que esta menina-deusa se
encontra ( faço-lhe vénia!).
Há quem demore séculos a estudar a fórmula
perfeita do comprimido exacto ao impulso dessa optimização. Pois eu digo-vos:
perfeita idiotice. Basta uma dorzinha qualquer e a sinapse desenrola-se, as
células nervosas congeminam no caminho umas das outras e, pimba!, mais uma
nuvem de massa cinzenta, mais uns centímetros sem que a ressonância magnética
tenha de concretizar-se para percebermos que um cantinho de miolos
massificou-se, num tom grisalho, sempre num tom grisalho, hum... Já pensaste
por que raios o tom do amadurecimento é prateado? A melancolia é a cor física
que comprova a evolução da inteligência emocional. Nada mais óbvio. A minha foi
implantada muito antes da idade própria, daí que se perceba a
extra-sensibilidade – pelo menos, eu percebo, e eu é que interesso, não?
A dor cai em
nós como que um relâmpago, estatuificamos, em posição de meditação, cadeados
que nos obrigam a pensar, a silenciar o ruído, a reflectir a intensidade da
luminosidade para outro lado qualquer ( fez-se luz, mas é mais do que aquilo
que um simples corpo consegue aguentar), a digerir o abalo, a equilibrar o
sofrimento, e retemos… a bosta disto tudo é que a optimização da inteligência
emocional optimiza tudo o resto, como por exemplo a memória, concede-nos uma
memória de elefante, e recalcamos toda a vida aquela dor. Serviu para
evoluirmos; acanhou-nos o discernimento. Levamos um choque elétrico e retivemos
na nossa memória essa dor, essa tensão. Daí em diante, qualquer semelhança não
é pura coincidência e a nossa inteligência emocional têm efeitos secundários
muito adversos, reconhece todas as semelhanças e entra em choque: intimida-se,
amedronta-se, sofre de ansiedade por antecipação, aterra no síndrome do pânico,
e cega para a inteligência propriamente dita. Qual é? A de não haver
consciência de que se o é: um ser inteligente.
Se há
especialidade em que uma inteligência emocional é perita é em consumir-se. E
toda a gente sabe ( basta observarmos um campeonato de xadrez, por exemplo) que
se há especialidade em que o mestre é perito é em ficar cego para tudo o resto,
daí que, não raras vezes, os principiantes suplantem os mestres. Pudera, também
não vêem mais nada a não ser aquele pormenor em que se tornaram especialistas. Tolheram-se
ao tamanho de uma ervilha, desocupando todo o restante espaço para quem vier.
Oxitocina: a
hormona do amor, dizem. Nem sei se a tenho em abundância ou em relutância. Sei
que me tornei especialista no amor e, a dada altura, deixei de ver tudo o resto
– inclusive o amor.
Nenhuma obsessão é boa. Esta não é diferente.
Há que libertar as emoções para outros espaços, não familiares, tentar obter
uma visão holística da coisa, conhecer e decifrar outros parâmetros de invasão.
Há quem procure o elixir dessa captação, desse entendimento do outro sem a destituição
da nossa própria identidade. Há quem observe e nomeie, é autista, só porque tem
um mundo muito próprio, desprovido de filtros que os demais possuem, e jorre
uma torrente de criatividade próxima do divino. P’ra que raio servem os
filtros, pergunto? P’ra que raio servem os filtros? Há quem nos queira
abocanhar com fármacos que ainda não foram inventados ( e ainda bem!), só para
criar esses filtros que impeçam a criação ( antítese?), que permitam a uma dada
inteligência impedir a criação porque a criação é o caminho – dizem – para
incapacitar qualquer inteligência emocional de desabrochar e reconhecer outra
inteligência emocional. Mas quem quer filtros? Dane-se os filtros. Os filtros
são o arcabouço da humanidade.
A criação é
mais intelectual, certo, é mais disciplinada, mais calculista… Sou capaz de
concordar que a criação destitui a emoção, arrefece o sangue e banaliza o
sensitivo. A criação precisa do
instintivo, do intuitivo, do sensorial,
no início, mas consagra-se( metódica
como só pode ser), acima de tudo, um acto especialista racional. E, como todos
os actos especialistas racionais, arrefece, desumaniza-se humanizando,
percebes? E contrai-se, porque só vê a sua especialidade. Tudo o resto deixa,
como que por magia, de existir. E isso é muito mau. Péssimo, mesmo. Às vezes,
um perfeito idiota, soluciona em segundos um problema que um especialista
demora décadas a tentar. E porquê? Porque vê o bolo todo, enquanto que o
especialista só está interessado na sua fatia. Ego?
É certo que
uma inteligência emocional eficiente tenha limites. É o que se chama de dar um
tiro no próprio pé – não que alguém tenha culpa de ter optimizado a sua
inteligência emocional, calhou! –, porque se é mais eficiente para umas coisas,
também o é para outras. E as memórias geneticamente e circunstancialmente
melhoradas são-no para o bom e para o mau. Há que bloquear a nossa
especialidade, a nossa obsessão, e canalizar energias para a libertação do ego
na direção do novo, do não familiar. Criar novas formas de lidar com a
informação: ser receptivo, ser sempre receptivo, mesmo que nos pareça uma
perfeita idiotice.
Nenhuma
especialidade, obsessão, é saudável. Há que domá-las, torneá-las, dançar os
ritmos indígenas com elas, fechar e
abrir os olhos as vezes que forem necessárias até que um ínfimo ponto de
diversidade surja – e mordê-lo com tudo, com dentes, com unhas, com garras, com
tudo. E partir do novo, daquela estrela; deslizar nos seus feixes à amplitude
do ângulo, o mais giro. Repara que até o que interessa na vida –
deslumbramento, estou a falar de deslumbramento –, torneia-se num ângulo giro:
abres a boca de espanto! ( é um ângulo giro!) O sorriso assume-se raso face a
isto, mas 180º sempre é melhor do que a rectidão de 90º ou a insuficiência de menos de 90º, certo? O acutângulo de um beijo
sabe sempre a pouco, por isso queremos sempre mais. ( E nunca estamos
satisfeitos, não é? Ao ponto de preferirmos, por vezes, o nulo!)
Repara que até
o que interessa na vida perfaz os 360º, abre-se num círculo de infinitude. Daí
que todos busquemos o giro que é do abraço e caiamos na amplitude exacta da
lágrima. E tu és mesmo giro! Sou tão emotiva!
Conceição
Sousa