"Pela manhã, Maria percorre, quase como uma religião ou profissão de fé, a calçada românica do centro histórico. Silenciosa; contudo gritando todo o eco de uma pesarosa existência.
Aquele brasão imponente, na gélida pedra, toca o fragmento longínquo do rebater dos sinos no passeio ingénuo da infância. No cauteloso ladrilhar salomónico das vivências enraizadas na memória colectiva, atenta em alguns jovens moradores que cultivam o espaço cosmopolita dos bares locais (venerados projectos de uma vida) para receber os curiosos visitantes de além fronteiras.
Conta: braços musculados jorrando jactos de água límpida, lavando, numa espécie de culto, as suas mágoas no chão cinzento de final de boémia vespertina; olhos vazios de realidade presos às páginas de livros sentados nas esplanadas , vagueando errantes na direcção do sonho. Espia: velhos moradores nos afazeres melancólicos do tempo; inclinam as varandas no sentido dos relógios pendentes e dos canteiros em flor. Repara: estendem as roupas enrugadas, que se tornam hirtas e novas, ao inspirar a amizade nos cheiros pré-cozinhados da vizinhança.
O sorriso rasgado na cara rígida caminha no percurso solitário habitual da adolescência. Sobe a dolorosa escada da juventude no quelho de uma rua estreita. As calcetadas vielas da idade madura sopram-lhe diariamente novo fôlego e alento. Enquanto tropeça no oco, entre lajes, usufrui o burburinho da mais recente capital europeia da cultura. Sente-se cansada. Senta-se ela também na esplanada. Remexe na bolsa e coloca o seu amigo preto em cima da mesa (o caderno de notas), sequiosa para beber tanto o iced-tea como a experiência gorgolejante em redor. Escuta o que a entidade capital, presente em tudo e em nada, lhe diz.
- Já te disse por vários sinais, movimentos, alinhamentos, coordenadas e algoritmos: ainda não é hora de a tua mãe retornar à luz. É apenas um pequeno susto para que te possas orientar, para que saibas que existo, para que não me renegues. Um pequeno susto. Desculpa, mas teve de ser.
-Entendo. Mas já chega. Que o médico nos diga: está limpa; o gânglio sentinela está intacto; não houve necessidade de extracção de todos os gânglios; não há metástases. O assunto morreu aqui.
- As linhas que escrevo são tortas. É preciso saber descodificá-las. E tu és boa nisso. Descodifica, vá. Pensa, Maria. Pensa. O que é que eu pretendo de ti?
-Que reflicta sobre a minha vida, abane estruturas, seja eu. Mas que não esqueça quem tu és, não te renegue. De preferência que escreva quem tu és e te dê força para me dar força. É isso?
-Estás perto. Mais calma? Confias?
-Sim, confio. Vai correr tudo bem. Só pode correr bem. Se não correr bem, deixarei de ser eu. Transformar-me-ei numa outra coisa, uma coisa alienada, algo que nem sequer pondero imaginar. Pois sei que será o abismo. Algo irreconhecível. Um eu que nunca fui e que nascerá ali. Um eu que me assusta. Um eu descrente. Um vazio. Um buraco negro.
-Tu sabes: o que eu quero é o que tu queres. E, se não correr bem, serão novamente as minhas linhas tortas. Há sempre uma meta no caminho da dor. E essa meta, aqui ou além, essa meta sou eu. Essa meta és tu. E ao chegares vais perceber que sempre estive aí, ao teu lado. Sempre me tiveste. Apenas não me vias, nem sequer me valorizavas. Sempre aí, contigo. Procura bem dentro de ti, no amor. Procura e detém-te aí, no amor. Nas coisas simples do dia-a-dia. No tudo que sempre tiveste. No tudo que sempre foste. No tudo que tinhas por garantido. E aproveita, enquanto tens. Aproveita, enquanto és. Não olhes para o copo meio vazio. Detém-te no copo meio cheio. Compreendes?"
Aquele brasão imponente, na gélida pedra, toca o fragmento longínquo do rebater dos sinos no passeio ingénuo da infância. No cauteloso ladrilhar salomónico das vivências enraizadas na memória colectiva, atenta em alguns jovens moradores que cultivam o espaço cosmopolita dos bares locais (venerados projectos de uma vida) para receber os curiosos visitantes de além fronteiras.
Conta: braços musculados jorrando jactos de água límpida, lavando, numa espécie de culto, as suas mágoas no chão cinzento de final de boémia vespertina; olhos vazios de realidade presos às páginas de livros sentados nas esplanadas , vagueando errantes na direcção do sonho. Espia: velhos moradores nos afazeres melancólicos do tempo; inclinam as varandas no sentido dos relógios pendentes e dos canteiros em flor. Repara: estendem as roupas enrugadas, que se tornam hirtas e novas, ao inspirar a amizade nos cheiros pré-cozinhados da vizinhança.
O sorriso rasgado na cara rígida caminha no percurso solitário habitual da adolescência. Sobe a dolorosa escada da juventude no quelho de uma rua estreita. As calcetadas vielas da idade madura sopram-lhe diariamente novo fôlego e alento. Enquanto tropeça no oco, entre lajes, usufrui o burburinho da mais recente capital europeia da cultura. Sente-se cansada. Senta-se ela também na esplanada. Remexe na bolsa e coloca o seu amigo preto em cima da mesa (o caderno de notas), sequiosa para beber tanto o iced-tea como a experiência gorgolejante em redor. Escuta o que a entidade capital, presente em tudo e em nada, lhe diz.
- Já te disse por vários sinais, movimentos, alinhamentos, coordenadas e algoritmos: ainda não é hora de a tua mãe retornar à luz. É apenas um pequeno susto para que te possas orientar, para que saibas que existo, para que não me renegues. Um pequeno susto. Desculpa, mas teve de ser.
-Entendo. Mas já chega. Que o médico nos diga: está limpa; o gânglio sentinela está intacto; não houve necessidade de extracção de todos os gânglios; não há metástases. O assunto morreu aqui.
- As linhas que escrevo são tortas. É preciso saber descodificá-las. E tu és boa nisso. Descodifica, vá. Pensa, Maria. Pensa. O que é que eu pretendo de ti?
-Que reflicta sobre a minha vida, abane estruturas, seja eu. Mas que não esqueça quem tu és, não te renegue. De preferência que escreva quem tu és e te dê força para me dar força. É isso?
-Estás perto. Mais calma? Confias?
-Sim, confio. Vai correr tudo bem. Só pode correr bem. Se não correr bem, deixarei de ser eu. Transformar-me-ei numa outra coisa, uma coisa alienada, algo que nem sequer pondero imaginar. Pois sei que será o abismo. Algo irreconhecível. Um eu que nunca fui e que nascerá ali. Um eu que me assusta. Um eu descrente. Um vazio. Um buraco negro.
-Tu sabes: o que eu quero é o que tu queres. E, se não correr bem, serão novamente as minhas linhas tortas. Há sempre uma meta no caminho da dor. E essa meta, aqui ou além, essa meta sou eu. Essa meta és tu. E ao chegares vais perceber que sempre estive aí, ao teu lado. Sempre me tiveste. Apenas não me vias, nem sequer me valorizavas. Sempre aí, contigo. Procura bem dentro de ti, no amor. Procura e detém-te aí, no amor. Nas coisas simples do dia-a-dia. No tudo que sempre tiveste. No tudo que sempre foste. No tudo que tinhas por garantido. E aproveita, enquanto tens. Aproveita, enquanto és. Não olhes para o copo meio vazio. Detém-te no copo meio cheio. Compreendes?"
(in "Tala, enquanto cura e nasce. Porque o milagre é acreditar." de Conceição Sousa)
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